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Felizarda Lemos: A mulher que treina uma equipa masculina

Numa dessas andanças pelos campos de futebol da cidade de Maputo, a nossa equipa de reportagem deparou com uma situação que gera(va) espanto na multidão: uma mulher a comandar uma equipa de futebol masculino. Era um jogo amigável mas a sua atitude, sempre com a mão direita a dar instruções para dentro das quatro linhas, encontrando uma resposta afirmativa dos seus jogadores, revelava que não se estava perante uma treinadora amadora, mas sim profissional, tanto que saiu vencedora depois dos noventa minutos.

O adversário era, nada mais, nada menos, que o Desportivo de Maputo, um colosso que com a sua grandeza caiu para o futebol dos bairros da capital do país. A curiosidade que, a olhos vistos, levou muitos a aceder ao campo naquela manhã de sábado, fez com que o @Verdade trouxesse esta entrevista para descortinar o que há por detrás desta jovem mulher, que vai além de uma simples treinadora. Quisemos perceber a motivação que a levou a enveredar por este caminho, num cenário praticamente raro, talvez o único em Moçambique. Ela chama-se Felizarda Lemos e é a treinadora principal da equipa do Zixaxa, da capital do país.

@Verdade – Quando é que começou a ser treinadora de futebol?

Felizarda Lemos – Comecei em 2007 como treinadora da equipa feminina da Escola Primária do Segundo Grau de Moamba, durante os Jogos Escolares daquele distrito. No mesmo ano fui convidada a treinar a equipa do distrito nos jogos provinciais, nos quais fomos campeões. Mais tarde, ainda em 2007, fui seleccionadora da equipa feminina da província de Maputo para os Jogos Desportivos Escolares nacionais, que tiveram como palco a cidade de Quelimane.

Naquela altura trabalhava também com os rapazes na escola, ainda que oficialmente treinasse equipas femininas. Descobri muitos talentos e porque tudo estava concentrado na cidade de Maputo, até porque em Moamba não existiam clubes, em 2008 tentei encaminhá-los para a cidade de Maputo através do Desportivo de Maputo.

@V – E qual foi a resposta que teve do Desportivo de Maputo?

FL – Quando cheguei ao Desportivo de Maputo fui recebida pelo senhor Calton Banze. Através dele, ainda em 2008, fundámos o núcleo de formação do Desportivo de Maputo em Moamba, onde fui a treinadora principal dos rapazes.

@V – E como é que funciona(va) o núcleo?

FL – Os miúdos aprendiam comigo a jogar futebol durante a semana e ao fim-de-semana vinham a Maputo para competir com os outros núcleos do Desportivo espalhados pela província, para efeitos de observação e testes antes de integrarem as equipas principais dos iniciados e dos juvenis daquele clube.

Em 2009 fiz com que dois rapazes estivessem na equipa principal de juvenis do Desportivo de Maputo. Cheguei a ter oito, mas, porque tinha de ser eu a hospedá-los em Maputo, o número reduziu para quatro, que são os que vivem comigo hoje. Importa referir que dois fazem parte da selecção nacional sub-17.

@V – O Desportivo não oferece condições para a hospedagem dos atletas?

FL – É preciso entender que eles surgem no Desportivo de Maputo como simples atletas. Ademais, eles ascenderam a juvenis e o núcleo de formação de Moamba não tem esse escalão, daí a necessidade de estarem a viver na cidade de Maputo.

@V – E o que aconteceu nos anos subsequentes?

FL – Em 2010 continuei o trabalho que vinha desenvolvendo. Já em 2011 fui convidada a treinar uma equipa sénior masculina que militava no Campeonato Provincial de Futebol, o Tumbuluko FC, contudo, só trabalhei por duas semanas.

@V – Porquê só duas semanas?

FL – Estava a dar o meu apoio em matéria de treinamento, uma vez que aquela equipa ia ao campeonato provincial pela primeira vez e precisava de aprender algumas técnicas.

@V – Para onde seguiu depois de duas semanas no Tumbuluko?

Recebi um convite da Federação Moçambicana de Futebol (FMF) para integrar o Gabinete Técnico do Futebol Feminino (GTFF), cargo que me permitiu tornar-me, por quase dois anos, seleccionadora nacional adjunta, das selecções A, sub-20 e sub-17. Quando terminou o meu contrato em Dezembro de 2012, contactei a direcção do Clube de Zixaxa e mostrei-me disponível para treinar a equipa juvenil. A direcção aceitou prontamente a minha proposta e cá estou hoje a trabalhar, com vista a trazer a equipa sénior ao clube, visto que trabalho com rapazes dos seus 16 e 17 anos.

@V – Como é que a direcção reagiu ao pedido, tratando-se de uma mulher?

FL – Ficaram espantados, como era de esperar. Mas como eles conhecem as minhas capacidades não houve receio e a minha contratação foi rápida. Pesou também o facto de eu ter passado por aquele clube como jogadora, quando saí do Ferroviário de Maputo.

@V – Pagam-lhe por isso?

FL – Não. Trabalho por amor à camisola.

@V – Mas essa iniciativa de trabalhar a custo zero partiu de si ou da direcção do clube?

FL – Conheço o clube e sei das suas limitações financeiras. Para mim foi um desafio enveredar por este caminho. Até porque não podia ficar sem fazer nada, quando posso fazer o que mais me agrada. É muito difícil trabalhar nestes moldes, mas o amor pelo futebol faz-me estar aqui, a trabalhar gratuitamente. Isso é o que mais importa.

@V – Não passa por necessidades na vida?

FL – Como qualquer um passo. Mas sou funcionária do Estado. Se não o fosse, creio que não estaria aqui.

@V – Mas é capaz de abandonar o cargo?

FL – Sim.

@V – Em que circunstâncias?

FL – Quando surgirem melhores propostas ou a direcção “cansar-se” de mim.

@V – O que é, para Felizarda Lemos, ser treinadora de futebol?

FL – Para mim o conceito de treinadora de futebol vai muito para além de orientar uma equipa para vencer um jogo. Ser treinadora é, antes de tudo, ser instrutora, ser mestre, ser amiga e companheira dos atletas. Longe do que muitos possam pensar, a profissão de treinadora pode ser exercida por qualquer um, desde que haja amor pelo trabalho e competência para tal.

@V – Felizarda Lemos passou por uma formação de treinadores?

FL – Neste momento tenho o nível C da Confederação Africana de Futebol (CAF), aptidão que adquiri em 2009. Mas venho frequentando cursos desde 2006, com formações de nível básico, de nível um, de treinadora de guarda-redes, de arbitragem, entre outras.

@V – Felizarda Lemos treina o Zixaxa desde Janeiro. Até ao momento quantos jogos já realizou e quais foram os resultados?

FL – Realizámos apenas dois jogos de observação. Estamos nas vésperas do torneio de abertura do campeonato da cidade de juniores. Defrontámos uma equipa de bairro e marcámos inúmeros golos a zero. Não me recordo do nome da equipa. Jogámos também com Desportivo de Maputo e vencemos por 2 a 1.

@V – Em poucos momentos da nossa história encontrámos treinadoras de futebol masculino. Como se sente por quebrar esta barreira?

FL – Só pelo facto de a direcção do Zixaxa ter aceitado a minha proposta, já me sinto uma vencedora, uma heroína. O resto vai-se ver durante o campeonato da cidade, até porque o meu maior objectivo é quebrar esse tabu de que a profissão de treinador de equipas masculinas é somente para os homens. Nós quando vamos aos cursos de treinadores de futebol, ninguém diz que isto é para homens e aquilo é para mulheres. Vamos todos para ser treinadores de futebol.

@V – Sente essa discriminação no seu dia-a-dia como treinadora de uma equipa masculina?

FL – Infelizmente o “machismo” é um comportamento que reside nas nossas sociedades a vários níveis. Para muitos o futebol é uma actividade somente para homens.

@V – E como tem reagido?

FL – Naturalmente. O bom é que sempre no final seja dos treinos, seja dos jogos, as pessoas que me assistem mudam de opinião e, por vezes, aproximam-se para me pedir desculpas pelos seus pensamentos errados. Um erro que as pessoas cometem é pensar que uma treinadora de futebol feminiza o futebol e isso, apesar da minha pouca experiência, não existe. O futebol é igual em todo o mundo.

@V – De que lado sofre discriminação: do público ou dos seus colegas?

FL – Desde sempre fui desconfiada. As pessoas com quem sempre trabalhei duvidaram do meu trabalho, isto a vários níveis, a começar pela época em que trabalhava com o núcleo do Desportivo de Maputo. Lembro-me de que até quadros daquele clube, naquela altura, se deslocaram, de surpresa, à Moamba para se certificarem de que de facto era uma mulher que estava por detrás dos processos de trabalho. Mas há também colegas que infelizmente são fomentadores dessa discriminação contra a mulher no futebol.

@V – Na sua óptica, porque é que ainda existe este tipo de discriminação?

FL – Tudo parte da nossa cultura, das nossas crenças e dos nossos valores. Nós não assimilamos algumas actividades para as mulheres, como, por exemplo, a prática do futebol. Quando, por exemplo, uma mulher joga futebol, ela fica sujeita a ouvir muitos palavrões. Outros, mais ousados, chegam a questionar: porque é que não fica em casa a cuidar do lar?

“Aquela” não devia estar a cuidar do marido, dos filhos ou a cozinhar? Em Moçambique, sobretudo, o futebol feminino não tem nenhum valor e isso acaba por desincentivar muitas mulheres que querem enveredar por esta modalidade desportiva, seja como jogadora, seja como treinadora.

@V – E acha que é possível acabar com este tipo de pensamento?

FL – Claramente, senão nem estaria aqui. Temos de ter a coragem de tapar os ouvidos e seguir em frente. Estou aqui na linha da frente para quebrar essa barreira e pretendo continuar enquanto tiver forças.

@V – Concretamente, o que deve ser feito para se acabar com a discriminação da mulher no futebol moçambicano?

FL – É preciso confiar mais na mulher. Nós, mulheres, também devemos mostrar trabalho, não basta ter vontade ou ser treinadora por formação como muitas que têm a formação e esperam pelo trabalho. Não que seja exemplo para ninguém, mas se não fosse o trabalho que desenvolvi na Moamba se calhar não estaria onde estou hoje.

@V – Disse que o futebol feminino não é valorizado no país. Porquê?

FL – Em Moçambique não há investimento virado para o futebol feminino. Falta quase tudo, a partir do próprio material de trabalho, de treinadores altamente formados, até à remuneração. Temos muito talento no país mas não existem estratégias para o seu aproveitamento. Pessoalmente, não consigo encontrar diferenças entre o futebol masculino e o feminino. Mas, tudo isto parte do topo, dos gestores do futebol que temos no país, que não olham para este aspecto.

É aqui onde reside o “machismo” a que me refiro, quando digo que o futebol é pensado numa perspectiva masculina. A Imprensa também não fica atrás. Os jornalistas não vão atrás do futebol feminino e esperam que tudo lhes apareça nas redacções.

@V – Qual foi o seu momento mais feliz enquanto treinadora?

FL – Ganhar ao Desportivo de Maputo. Mas devo dizer que fico bastante feliz com as enchentes que se verificam durante os treinos da minha equipa. Subentende- se que é por ser uma mulher a treinar, mas isto deixa-me muito orgulhosa do trabalho que faço.

@V – Qual foi o segredo para vencer o Desportivo de Maputo?

FL – Chegámos cientes de que o Desportivo é uma grande equipa e tem um treinador extraordinário, o Artur Semedo. Entrámos defensivos na esperança de jogar somente ao contra-ataque. Mas à medida que o tempo ia passando, o Desportivo de Maputo abrandava o seu jogo ofensivo e isso permitiu-nos subir as linhas. Só para ter uma noção, nós entrámos com um sistema 4 – 5 – 1 e intercalamos para o 4 – 4 – 2 que resultou em dois golos.

@V – E como tem sido a relação com os jogadores?

FL – A relação com os jogadores é muito boa. Sinto alegria neles e eles transmitem- me o mesmo sentimento. Há muita confiança entre nós. Sinto isto a cada dia de treino e a cumplicidade entre nós, a vontade de ganhar e de um dia sermos todos reconhecidos é absoluta.

Felizarda Lemos, uma mulher apaixonada pelo futebol

@V – Quem é Felizarda Lemos?

FL – Sou uma mulher casada, de 33 anos, nascida em Maputo a 12 de Dezembro. Sou mãe biológica de uma menina de três anos e adoptiva de quatro rapazes, todos jogadores de futebol. Mudei-me em 1995 para a cidade da Beira para viver com o meu padrasto. Foi nessa mesma altura que entrei para o mundo do futebol através de uma equipa local, denominada Femasu da Beira.

Em 1997 fui convidada para envergar a camisola do Ferroviário da Beira no atletismo. Mas a minha insatisfação por praticar esta modalidade fez com que praticasse em simultâneo o futebol no Femasu.

Fui transferida para o Ferroviário de Maputo em 2001 para dar continuidade ao atletismo, tendo, no mesmo ano, abandonado definitivamente aquela modalidade para abraçar o futebol no mesmo clube. Contudo, a direcção locomotiva decidiu acabar com o futebol feminino em 2005 e, dois anos mais tarde, tornei-me treinadora.

@V – O que o seu marido pensa da sua profissão?

FL – Tal como o meu próprio nome diz, eu sou uma felizarda dentro de casa. Tenho um marido que me apoia em tudo e dá-me forças para continuar a trilhar por este caminho de treinadora. Ele é o meu suporte. Já pensei em desistir de ser treinadora, mas ele sempre incentivou-me a continuar, apoiando-me em tudo o que precisei.

@V – Em que momento pensou em desistir?

FL – Quando não me senti estimulada. Por incrível que pareça, é duro estar numa batalha sozinha e sem alguém para ajudar.

Mas, graças ao meu marido, estou aqui e pretendo fazer história.

David Nhassengo

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