Em alguns bairros periféricos da cidade de Nampula, dispor de uma latrina é um luxo. Na lógica segundo a qual “quem não tem cão, caça como gato”, dezenas de moradores recorrem aos riachos para fazer as suas necessidades, tanto durante o dia como à noite.
Mas a prática de fecalismo a céu aberto naqueles locais não é apenas o reflexo da negligência das autoridades municipais locais e da falta de uma política de saneamento do meio eficaz, é também “cultural”, até porque grande parte dos residentes é oriunda do litoral, onde é hábito defecar ao longo da praia.
Quando precisa urgentemente de uma casa de banho, Issata Nasser, dona de casa e moradora da Zona Verde, bairro de Namutequeliua, caminha aproximadamente 20 metros até chegar ao matagal atravessado por um riacho. Ao sair de casa até ao local, ela tem de passar pelo lixo amontoado no caminho e fezes de pessoas que vivem nas proximidades.
A área onde reside encontra-se isolada por um pequeno riacho. A ponteca que facilitava a travessia de pessoas foi destruída pela fúria águas da chuva e não há quaisquer perspectivas da sua reposição. Presentemente, os residentes têm de fazer malabarismos para se fazerem à outra margem.
É o único acesso às moradias construídas na margem esquerda. Porém, são as donas de casa que mais sentem na pele a ausência de uma ponte, uma vez que, sem alternativa, são obrigadas a passar carregadas com baldes na cabeça ou outros bens. Tem sido assim quase todos os dias.
Desde o princípio do ano passado que Issata mora no local com o seu marido, um filho e uma sobrinha. Natural de Nacala-Porto, desde que chegou àquele bairro não tem casa de banho, alegadamente por falta de dinheiro e pelo facto de a área ser pantanosa.
“Esta zona não é apropriada para construir uma latrina. Já tentámos cavar, mas sempre encontrámos água”, justifica-se. Entretanto, a única solução encontrada para o problema foi recorrer ao matagal ou defecar em sacos de plástico e depois deitar os excrementos no riacho durante a noite.
“Quando chove, o que já é difícil de suportar torna-se pior: o cheiro nauseabundo das fezes não nos deixa à vontade. Aliás, muitas vezes, os dejectos são trazidos até aos nossos quintais pelas águas da chuva. É uma situação preocupante”, lamenta. O caso de Issata Nasser não é isolado. Dezenas de residentes da Zona Verde vivem o mesmo dilema.
Puchara Omar, de 26 anos de idade, mãe solteira, é também uma dona de casa que vive o drama de não ter uma retrete. Oriunda do distrito de Mossuril, ela mora na Zona Verde com um agregado familiar constituído por cinco pessoas. Desde que fixou residência naquele bairro nunca teve a preocupação de construir uma casa de banho. O banho e as necessidades têm lugar a céu aberto, sobretudo durante o período da noite.
Há sete anos, Puchara e a sua família vivem sem uma casa de banho. Um cubículo, de três metros quadrados, cercado por capim, é usado para se esconder durante o dia. Não passa pela sua cabeça a ideia de ter uma latrina, até porque não dispõe de dinheiro para o efeito. “É muito caro ter uma latrina, a nossa salvação tem sido o riacho”, diz.
Numa área em que existe apenas uma latrina para cerca de 50 famílias, Ana Paulo Marques orgulha-se de ser um dos poucos moradores que têm casa de banho na sua casa. Mas nem sempre foi assim. Moradora da Zona Verde, em Namutequeliua, há 12 anos, Ana conta que quando chegou àquele bairro, a família dela recorria ao riacho que dista aproximadamente 50 metros da sua residência para fazer necessidades maiores.
Cansada de usar o matagal e sacos de plástico, a família construiu uma casa de banho com uma latrina melhorada. “Nós fizemos o buraco no tempo seco, uma vez que a zona é pantanosa”, conta.
Um problema comum
O problema de fecalismo a céu aberto não é apenas dos moradores de Namutequeliua. Nos bairros de Muatala, Napipine e Mutauanha vive-se o mesmo drama. A solução tem sido os riachos que atravessam esses aglomerados de gente.
Até há pouco tempo, a água desses locais era utilizada para beber. Actualmente, é usada para lavar roupa, tomar banho e alimentar o gado. Problemas de saúde é que não faltam, principalmente entre as crianças, que circulam descalças e brincam entre fezes humanas e lixo.
A população dessas zonas tem vindo a conviver com água dos esgotos proveniente das manilhas que transportam aquele líquido de diversas empresas e residências localizadas no centro da cidade. Apesar de ser poluída, ela é usada para o consumo humano. A título de exemplo, os moradores que se fazem ao local para lavar roupa ou tomar banho no riacho Muatala convivem com fezes e lixo que sobressaem nas margens.
Desde há muito que Neusa Maurício Joaquim, de 29 anos de idade, se socorre do riacho Muatala para a lavar a roupa dos seus filhos e do marido. Ela conta-nos que utiliza aquela água para lavar os pratos, tomar banho e outras actividades afins, e algumas vezes para confeccionar os alimentos, sobretudo nos momentos em que a cidade tem passado por uma crise no abastecimento de água potável.
Neusa diz ter a noção do perigo que o consumo de água daquele riacho representa para a saúde, mas afirma que não tem outra alternativa. “Uso esta água para tudo e nunca tive problemas de doença, se calhar possa ter a partir deste momento que converso com o senhor”, diz.
Quando questionada sobre se possui uma latrina, a resposta não foi surpreendente, até porque não é a única moradora com esse problema. “Não tenho. Quando estou aflita, tenho feito as minhas necessidades aqui” afirma para depois acrescentar que na zona onde vive quase todos os seus residentes recorrem ao rio Muatala.
Sobre as razões que fazem com que ela não tenha latrina, Neusa apontou a falta de dinheiro como um dos principais motivos. Num outro ponto, a nossa entrevistada assegurou que no mesmo bairro há pessoas com capacidades para tal (entenda-se dinheiro), mas que, por hábito e costume, não constroem casas de banho.
Rodrigues Alberto, de 34 anos de idade, casado e pai de três filhos, residente no bairro de Muatala e nas imediações do riacho com o mesmo nome, diz que tem tomado banho naquele local por uma questão de hábito. “Desde que me juntei à minha esposa sempre tomei banho aqui. A minha mulher só tem de ir buscar água para o consumo”, afirma.
Todos os dias, Alberto precisa de caminhar pelo menos 200 metros até chegar ao riacho. Tem de “contornar” as fezes humanas que estão nas margens. Ele é um dos moradores que se orgulha, literalmente, de nunca ter tido problemas de saúde por estar a tomar banho naquele local. Aliás, o rio Muatala, como é conhecido, tornou- -se a casa de banho a céu aberto para todos os membros do seu agregado familiar.
A água usada pelos moradores provém de misturas de águas negras ou de esgotos provenientes de algumas oficinas, empresas e residências do centro da cidade. Porém, isso não é argumento suficiente para desencorajar Alberto e a sua família. “Ela é purificada durante o percurso”, acredita.
Alberto revela-nos que está a construir a sua latrina, mas, enquanto isso não se materializa, ele e a família recorrem ao riacho Muatala para fazer as suas necessidades biológicas.
No bairro de Mutauanha a situação é a mesma. Encontrámos um grupo de criança a tomar banho no para depois ir à escola. Hermínio Hassamo, de 13 anos de idade, afirmou que sempre se faz àquele local para se lavar. Tem sido assim há mais de três anos e nunca adoeceu. “Tomo banho aqui e não há problema, e vou continuar a tomar porque não gastamos água” diz o menor.
Estêvão Mavilua, de 41 anos de idade, afirmou que são poucas as pessoas que vivem nas imediações do riacho que dispõem de latrinas. Muitas vezes, não se deve à falta de dinheiro para construi-las mas sim aos hábitos e costumes das zonas de origem.
“A maior parte dos que vivem nas proximidades do riacho é proveniente dos distritos costeiros e geralmente não tem o hábito de construir uma latrina” acusa. Segundo Mavilua, a situação é apontada como sendo a principal causa da prática de fecalismo a céu aberto e da degradação do meio ambiente nos diversos bairros da cidade.
Maria Gaspar, de 34 anos de idade, residente no bairro de Mutauanha, justifica-se afirmando que o governo e as autoridades municipais não criam condições adequadas para acabar com o fecalismo a céu aberto.
Maria avança que muitas pessoas usam a água poluída do riacho por falta de alternativas ou mesmo meios de obter a água potável para consumo. “Enquanto não tivermos uma solução vamos continuar a usar esta água para consumo, lavar roupa, tomar banho e cozinhar”, garante.
No riacho do bairro de Napipine, a população, à semelhança dos moradores dos outros bairros, usa o local para defecar, além de lavar a roupa e tomar banho.
Quanto custa ter uma latrina melhorada?
Para a maior parte dos moradores dos bairros suburbanos da cidade de Nampula, construir uma latrina melhorada não é algo fácil. O custo de construção chega a ser superior ao salário mínimo nacional. Muitas famílias vivem o drama de não ter o que comer e, quando conseguem algum dinheiro, a primeira preocupação é adquirir uma lata de farinha de milho e feijão, ao invés de apostarem numa sanita.
Para ter uma latrina, o indivíduo tem de despender 850 meticais para obter a laje, 2.400 meticais para adquirir blocos (são necessário, no mínimo, 150 blocos), 500 meticais para a abertura de uma cova e 1.000 meticais para a mão-de-obra. Ao todo, são 4.750 meticais que o pacato munícipe tem de gastar.
Saneamento do meio a nível da província ainda é precário
Como forma de acabar com a prática de fecalismo a céu aberto e a degradação do saneamento do meio, o governo da província de Nampula construiu pouco mais de 25.244 latrinas melhoradas nos diferentes distritos.
Neste processo, foram atingidos os distritos nos quais a situação estava a atingir níveis alarmantes, nomeadamente Moma, Mogincual, Mogovolas, Ilha de Moçambique, Mussuril, Memba, Nacala- Porto e Nacala-a-Velha, Monapo, Nacaroa, cidade de Nampula, Erati e Meconta.
O director provincial da Saúde em Nampula, Mahomed Riaz, considera que o saneamento do meio é precário, apontando a questão de lixo e fecalismo a céu aberto como sendo os principais factores que aceleram a degradação do meio ambiente.
Riaz sublinhou que a província de Nampula encontra-se numa situação bastante preocupante não só no que respeita ao saneamento do meio, como também à higiene colectiva e individual.
O lixo espalhado por quase todas as ruas e bairros dos diferentes municípios, com destaque para a cidade de Nampula, é o lado mais visível. “A situação de higiene está muito mal. Há lixo espalhado por toda a cidade e não se pode dizer que estamos bem nessas condições”, disse.
Além do lixo, o director da Saúde em Nampula afirmou que a província está a registar um número crescente de casos de doenças ligadas à falta de higiene, e o saneamento do meio está bastante degradado.
“Os casos de diarreias, malária, elefantíase, conjuntivite, cólera, entre outras doenças, resultam da falta de tratamento do meio e limpeza ou mesmo higiene colectiva e individual que está a faltar nas pessoas, assim como a nível das autoridades responsáveis pela questão de saneamento”, garante Mohamed Riaz.
Riaz fez saber que o problema de saneamento faz-se sentir mais nas zonas urbanas, onde o fecalismo a céu, a falta de remoção ou recolha de lixo e tratamento de esgotos, e existência de águas negras e estagnadas deixam o ambiente à mercê de situação que periga a saúde.
E acrescenta que difícil é perceber as reais causas desse problema e o facto de a população e os responsáveis de diferentes sectores ligadas ao assunto não levarem a sério a questão. Aliás, o director provincial da Saúde culpa as autoridades municipais pela situação. “Apesar de estarem a fazer cobranças de taxas de lixo, as cidades continuam na mesma situação precária”, comentou.
A cidade de Nampula é uma das mais críticas no que diz respeito ao lixo, enquanto os municípios da Ilha de Moçambique e Angoche são os mais afectados pelo fecalismo a céu aberto.
“Precisamos de muito trabalho de sensibilização sobre os mecanismos e boas práticas sobre o saneamento do meio” referiu Mohamed Riaz, tendo acrescentado que a província precisa de melhorar bastante no que diz respeito às boas práticas e à higiene dos moradores.
“Quase não existem campanhas de melhoramento do saneamento, e nenhuma das actividades realizadas deu os frutos desejados”, lamentou.
Concluindo, Riaz lançou um apelo no sentido de todos os dirigentes e a população em geral continuarem a lutar contra a degradação do meio ambiente, tornando o mundo mais saudável e sem todos os actos nefastos que poluem o solo e o ar.