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“Eu não sou alemão, mas também não sou moçambicano”

“Eu não sou alemão

Durante os anos em que viveu na Alemanha, a moçambicana Regina nutriu um amor intenso pela amiga alemã, Heike. O problema é que a tradição do povo da primeira não admite o matrimónio entre mulheres. No entanto, cerca de 20 anos depois Regina ressente-se da decisão que tomou…

Provavelmente, primeiro parágrafo da nossa matéria não tem nada a ver com o que trataremos nos próximos. Mas o que é um bom tema para uma matéria jornalística? Será a marca indelével que o mundo tem sobre os arianos quando perseguiram e mataram os judeus? Ou é o sentimento de angústia que, há 20 anos, os ‘madgermans’ manifestam, semanalmente, contra o Governo do seu país?

Há pessoas que nessa relação Moçambique-Alemanha, lutando contra o tempo que passa, ainda se questionam: será que os indivíduos que, vivendo na Alemanha, nasceram de relações (de amor que o tempo e a revolução se responsabilizaram por frustrá-las) entre moçambicanos e alemães, em Berlim onde vivem, se devem preocupar com os seus irmãos em Moçambique? Que dizer dos moçambicanos que estão na mesma situação?

A crónica oficial revela que os moçambicanos – muitos dos quais hoje são conhecidos pelo nome ‘madgermans’ – foram para a República Democrática Alemã (RDA), a fim de aprender como lidar com os desafios que naqueles anos seriam (e foram) instalados pela guerra dos 16 anos. O problema é que nos dias que correm, na prática, eles são o estorvo da própria existência.

Imarcescíveis, eles reivindicam os seus direitos. Os direitos de um operário cujos 60 porcento de ordenado foram descontados durante inúmeros anos e não lhes estão a ser restituídos. ‘Madgermans’ reivindicam e, por causa disso, para as crianças que nasceram ao longo do segundo quinquénio dos anos 90 do século passado, é provável que ‘madgermans’ tenha o sentido da reivindicação. É assim como os conhecem. Mas será que eles são mesmo assim? Eles apreciam essa conotação? E como é que esse conjunto de acontecimentos influenciam e/ou influenciaram a construção da sua identidade? São muitos os assuntos em torno desse grande tema – a identidade moçambicana-alemã. O sentido inverso é válido.

Todos são narrados num evento artístico-cultural, na verdade, uma grande produção dos tempos actuais, em que também aproveitamos para aprender que – na Alemanha – os moçambicanos foram impelidos pela situação a compreender que lá “não existe mau tempo, só há mau agasalho”. A obra chama-se Identidade – Um Romance Danado e é uma criação de Jens Neumam e exibe, no mesmo palco, o teatro, o cinema e música ao vivo, sob execução de 15 artistas.

Mas era preciso compreender também – como a mesma obra explica – que o socialismo não é perfeito, porque não existe um sistema que garanta todos os serviços básicos para o povo. O importante a considerar é que as relações entre Moçambique e Alemanha são antigas, do tempo em que ainda vigorava o colonialismo. Isso significa que Estado alemão foi um parceiro de Moçambique na luta pela independência. É que, de acordo com a obra Identidade – Um Romance Danado, os primeiros alemãs que se instalaram no país, na Ilha de Moçambique, não eram colonizadores. Eles tinham projectos de desenvolvimento agrícola, explorando plantações.

Relações humanas e construção social

A Alemanha é conhecida pelos seus feitos – bons e maus. Mas como eram as relações humanas entre os alemães e os moçambicanos? Sem excluir as dificuldades típicas da inserção social, a partir da necessidade da aprendizagem dos códigos culturais como, por exemplo, a língua e a adaptação ao clima local, os moçambicanos tiveram de enfrentar o nacionalismo alemão.

Tiveram de aprender que lá, por família se entende um núcleo limitado, constituído pelo pai, pela mãe e pelo filho. É essa realidade que, na interpretação dos moçambicanos, causa a solidão alemã, muitas vezes, originada pelo individualismo, esse pensamento segundo o qual primeiro eu, segundo eu e depois eu. Mas é incrível reparar que muitos moçambicanos que regressaram ao seu país enfrentam o problema da identidade, e até certo ponto de se adaptarem ao clima local. Há moçambicanos que sentem falta da neve, da língua e da literatura alemãs.

Mas lá naquele país, o controlo aos moçambicanos era extremo. Por exemplo, nas discotecas, os alemães vigiavam-nos bastante sob pena de perderem as suas namoradas. É isso o que, em parte, originava desavenças entre ambos os grupos. Os moçambicanos pensam que o encontro de culturas só funciona num país sem nenhum absolutismo, como Moçambique. Nesta terra, vivem e convivem pessoas de todas as partes do mundo.

Em contra-senso, na Alemanha, os moçambicanos eram obrigados a assinar contratos laborais sem os compreenderem. Em resultado disso, muitos trabalhavam em sectores em que não se sentiam bem. É por isso que eles reconheciam que apesar de serem considerados a “elite da nação” – o mesmo não tinha valor nenhum porque não lhes proporcionava o bem-estar.

“O alemão não quer saber como você vive, como você está, se você tem família ou não. Para ele é muito mais importante apenas saber quanto você ganha”. Isso significa que o interesse da Alemanha (não só em relação aos moçambicanos) é produzir. Apenas isso. “Eles não precisam de nós, apenas querem a nossa mão-de-obra. Para mim, os alemães são uma máquina de precisão – eles são demasiadamente precisos”, comenta um dos actores em cena.

Racismo

A peça revela que o Governo alemão não era a favor do racismo, entretanto naquele país havia pessoas que o praticavam. Por isso, nessa relação moçambicano-alemão, depois do trabalho o intercâmbio entre ambos os povos cessava. Nesse sentido, “a nossa integração social não interessava a nenhum dos Governos dos dois países”.

Tal como os seus documentos que foram retidos naquele país, existem moçambicanos que sentem que parte de si, como humanos, a sua identidade, ficou na Alemanha. É como se isso tivesse sido uma estratégia para fazer com que os ‘madgermans’ que, outrora na Europa, eram considerados a “elite da nação”, tinham-se tornado uma espécie de miseráveis na sua própria terra. “O Governo moçambicano esquece que foi garças ao nosso trabalho que teve dinheiro para comprar armas na Alemanha”.

Uma questão da identidade

Identidades – Um Romance Danado documenta que existem 2200 ‘madgermans’, os moçambicanos que no âmbito da cooperação com o referido país viajaram para a Alemanha. Eles estiveram na Europa e, por isso, na visão de muitos dos seus conterrâneos deviam ser os bem- -sucedidos. Como explicar o fracasso na Europa? No seio desse grupo, alguns visionários que tinham estudos superiores, assim que se aperceberam da gravidade da situação que se instalaria, ‘fugiram’ de Moçambique. No entanto, há uma questão que se impõe: “Quando uma pessoa viaja para Alemanha, a fim de estudar, e não retorna ao país de que valeu esse investimento?”.

Talvez a resposta seja negativa. O problema é que, nalguns casos, a identidade ‘madgerman’ é crítica e condiciona o acesso ao emprego em Moçambique. A obra Identidade narra experiências de moçambicanos que, tendo sido melhores estudantes na Goethe Institut, na Alemanha, não encontram enquadramento no país. São estas as ocorrências que nos deixam questões de fundo para reflectir. Para quando uma nacionalidade do mundo, sem necessidade de vistos e fronteiras? Será que a nacionalidade não é um conceito arquitectado?

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