Volvidos pouco mais de dois meses após a aprovação, pela Assembleia da República, do Estatuto do Combatente, um documento que tinha como objectivo a salvaguarda dos interesses dos combatentes das duas guerras, nomeadamente a luta pela independência e a dos 16 anos, esta última que envolveu a Renamo e o Governo dirigido pelo partido Frelimo.
Engane-se quem pensa que o moçambicano só tem conhecimento daquilo que o beneficia. Embora o estatuto tenha sido aprovado e amplamente propalado, pessoas há que, mesmo fazendo parte dos interessados, desconhecem o documento, muito menos os benefícios que o mesmo oferece, dentre os quais o direito à pensão de invalidez e de reforma, e bónus de reinserção. É o caso de Francisco Mavie, que fez parte das fileiras da Renamo, durante a guerra dos 16 anos.
Desempregado e pai de cinco filhos, Francisco Mavie vive numa casa de construção precária e (sobre)vive de biscates que faz no seu dia-a-dia. Embora seja um dos visados do Estatuto do Combatente, quando abordado pela nossa equipa de reportagem, disse desconhecer a existência do mesmo e do seu conteúdo.
O mais grave é o facto de não ter feito o registo a que os combatentes das duas lutas foram submetidos, alegadamente, por desconhecimento da medida. “Se tivesse sido informado, ter-me-ia registado. A informação não circula”, disse Mavie.
A agravar esta situação está o preconceito de que Mavie e sua família são vítimas na zona onde moram, pelo facto de este ter sido guerrilheiro da Renamo.
“Enfrento muitas dificuldades para viver nesta zona. Os meus vizinhos chamam-me de matsanga (nome pelo qual eram/são tratados os guerrilheiros da Renamo). Os meus filhos são desprezados, por causa do meu passado. O meu maior medo é o futuro dos meus filhos”, disse Mavie, visivelmente emocionado.
Mavie não é o único que desconhece a existência do estatuto do combatente. Américo Muianga é pai de sete filhos e conta actualmente com 54 anos. Após a assinatura do Acordo Geral de Paz, em 1992, a única esperança que alimentava era de um dia ingressar nas fileiras da Polícia da República de Moçambique (PRM), como previa o acordo, facto que não aconteceu.
Frustrado o desejo de fazer parte da PRM, a única alternativa foi trabalhar numa empresa de segurança privada, exercício do qual recebe 3 245 meticais por mês, valor insuficiente para garantir a alimentação, transporte e outras despesas.
Mesmo desconhecendo a existência do estatuto, Muianga mostrou-se optimista pois vê a aprovação do mesmo como uma forma de reconhecimento aos que deram a sua vida e juventude pela independência e democracia do país.
Entretanto, Muianga acrescentou que o compromisso assumido pelo Governo, em 1992, de integrar os “homens da Renamo” nas fileiras da PRM, deve ser respeitado. “Há muitos desmobilizados da Renamo que ainda estão à espera da materialização da promessa feita em 1992”, acrescentou.
Para terminar, Muianga sugeriu que a lei sobre o estatuto do combatente fosse mais divulgada nos órgãos de comunicação social, e em todas as línguas nacionais, porque, segundo ele, há ainda muita gente que não tem conhecimento da sua existência. “Deve-se publicar a lei nas televisões, rádios e outros meios, para que todos possam saber e se benefi ciar do que ela tem para nós”, finalizou.
O Estatuto do Combatente tem sido alvo de críticas provenientes da sociedade civil e de partidos políticos, alegadamente porque a mesma benefi cia mais os combatentes da luta de libertação nacional em detrimento dos da guerra dos 16 anos (guerrilheiros da Renamo), ou seja, a lei é discriminatória.
Fórum dos Desmobilizados distancia-se do estatuto
Para o presidente do Fórum dos Desmobilizados de Guerra (FDG), Hermínio dos Santos, o estatuto dos combatentes é uma lei que visa acomodar interesses partidários, neste caso da Frelimo, e discriminatória, daí não fazer sentido a sua existência.
Dos Santos considera que “se a Frelimo quer uma lei como esta, então que a aprove no Comité Central e que arranje dinheiro para pagar os seus membros. O que não deve fazer é pagá-los com o dinheiro proveniente dos impostos dos moçambicanos”.
Entretanto, o delegado da Associação Moçambicana dos Desmobilizados (AMODEG) diz, na voz do chefe do Delegado da AMODEG a nível da cidade de Maputo, José Nguilaze, que não reconhece o Fórum, liderado por Hermínio dos Santos, porque “a palavra fórum pressupõe a existência de um conjunto de associações e que esteja legalmente criado, o que não é o caso da FDG, que é constituído por um punhado de gente”.
José Nguilaze assegurou que no país existe apenas um único fórum de desmobilizados de guerra legalmente constituído. Trata-se do FOMEC (Fórum dos Ex-combatentes), criado em 1999. O mesmo congrega 12 associações e tem como presidente Samuel Tafula.
Querelas à parte, José Nguilaze considera que a lei é bem-vinda pois alguns combatentes estavam excluídos no antigo estatuto, que só beneficiava os combatentes da Luta de Libertação Nacional. “Agora estamos satisfeitos porque esta lei (estatuto do combatente) abrange todos os desmobilizados, nomeadamente os da luta de libertação e os da guerra dos 16 anos”, aponta Nguilaze.
Em relação à discriminação de que se queixam alguns sectores da sociedade, Nguilaze diz que o novo estatuto não é discriminatório, não obstante os dois grupos de combatentes tenham histórias e contextos diferentes.
“Nós temos que valorizar o esforço que o Governo fez para que os dois grupos fossem reconhecidos”, conta Nguilaze, para quem os combatentes dos 16 anos eram desprezados e renegados para o segundo plano, situação que teve o seu fim com a aprovação do novo estatuto.
O delegado da AMODEG a nível da cidade de Maputo deplorou o comportamento de alguns desmobilizados, que fazem discursos que incitam à violência alegadamente porque o actual estatuto é discriminatório.
“Os que pensam dessa forma estão perdidos no tempo e no espaço, por não saberem o querem, proferem asneiras e ameaçam a estabilidade do país, fruto de muito sangue e sacrifício”, concluiu.