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Entre “Jasmins e Chambre” há uma vida que perece

Entre “Jasmins e Chambre” há uma vida que perece

Na sua exígua e cómica obra literária, intitulada Jasmins e Chambre, o novel escritor moçambicano, Nélio Alice Nhamposse, ou simplesmente Matiangola – além de abordar temas relacionados com a formação humana desde a fase embrionária, a vida, o amor e até o falecimento -, decidiu dessacralizar a morte, banalizá-la, desafiá-la e, sobretudo, impor condições nas quais quer ser sepultado. Não é obra do acaso que, nestes escritos de 74 páginas e 18 capítulos, Matiangola se superioriza à morte. Ele busca a razão e diz: “Cada qual cuida do seu fim e do seu enterro”.

Se, porventura, se solicitasse a qualquer vivente, sobretudo os idealistas, os sonhadores cheios de vida e projectos e se perguntasse sobre como cada um quer morrer ficaríamos estupefactos com as respostas. Pois é. Na vida, cada homem quer partir do seu jeito; alguns cheios de artefactos luxuosos e outros nus, tal como vieram ao mundo.

Mas todos nós, de uma forma genérica, conhecemos os dilemas e os dramas que na referida “hora da nossa morte” decorrem, que, não obstante, podem ser contraditórios. Mas, tal como se subentende nos episódios do sexto capítulo, página 35, para os gananciosos tradicionalistas a morte de um individuo é tida como sinónimo de bênção, de tal forma que, segundo eles, após o seu falecimento, o finado fica vigilante e guardião das suas famílias.

E explica-se: “Naquele dia, Matiangola permanecia sequioso no caixão, pálido à semelhança da cegonha. Zandamela Phandava, pai do falecido, que rejuvenescia a cada morte, quis enterrar o morto naquela noite, com pressa de o mesmo começar a trabalhar o mais rápido possível….”. Irónico e cheio de simplicidade, o autor junta o útil ao agradável.

O convencionalismo que gera descontentamento social: “De uma ou de outra forma irias falecer. Nós só viemos facilitar o processo. Repito, facilitar. É o teu destino. Tu serás o nosso espírito invisível. Sabes, vais encher a tua família de fortuna”. Contudo, de acordo com os prefaciadores da obra, Joaquim Selemane e Dione Mabunda, a morte configura o maior perigo, o temor, a maior ameaça (…) para, quase, todos os seres humanos, sobretudo os que amam (entenda- se o amor em todas as suas vertentes).

Parece que o medo não deixa de surgir quase sempre que o homem pensa no que será dos seus amados após a sua inevitável morte, ou, se quisermos, a chamada partida eterna para o além. Deste modo, quase ninguém consegue imaginar como irá superar a dor da perda sem fim dos seus amados. A hora, as razões e a maneira como morreremos é desconhecida. Mas, em Jasmins e Chambre, Matiangola hierarquiza-se sobre a morte, manifesta desejos sexuais e exige a sua satisfação. Enfim, ele é um morto anormal, tradicionalista, exigente, arrogante, orgulhoso…

“Matiangola está consciente da imortalidade da morte e, perante a sua incapacidade de fazer milagres, resigna- -se, mas não na totalidade, e prefere, no mínimo, por um lado, adiar o seu falecimento em desafio a quem o pretende morto – constituindo uma inédita conquista por cima do medo, mas não por mais de sete anos (tempo muito parco para a ambição do ser humano no activo como ele )e, por outro, alegadamente porque ainda há incumbências por cumprir (com enfâse para missões amorosas), antes da sua viagem sem regresso. Esta parece ser a vontade de quase todos os humanos quando pensam na morte… nunca estão com todas as missões cumpridas…”, lê-se no prefácio.

Por exemplo, no texto “O dia do enterro de Matiangola”, presunçoso, o artista realça a questão sobre como o morto é visto nas sociedades tradicionalistas e/ou modernas. Na verdade, embora tenha reduzido, ainda persistem as ideias segundo as quais os mortos são os nossos protectores.

Se calhar, nossos deuses: “Este verme deve morrer. É uma questão de honra e dignidade para a família. Eu sou a fonte e ele a matéria-prima. Investi muito dinheiro nele e a sua morte é sagrada”, dizia Zandamela Phandava. Phandava – pai do falecido que rejuvenescia em cada morte ocorrida na família – queria que o filho sucumbisse. Mas Matiangola queria ter o último momento de amor, de tesão com Julieta. Trata-se, na verdade, de um mero sentimento de querer a satisfação antes da morte. Queria morrer limpo, triunfante, sorridente…. E isso é justo.

No entanto, “estava possesso, ébrio de amor. Julieta roçava tudo quanto era corpo. Naquele caixão, o gemido era o hino de dois amantes na madrugada. A perdição havia-nos tomado de sonho. Amávamo-nos como loucos ao cedro da levitação. A cada penetração, Julieta expelia todo o sémen. Cambaleávamos nesse ziguezague. O delírio era a palavra de ordem. O ambiente ao redor era sombrio, assustador, afinal tínhamos tornado a urna o nosso leito de prazer. O proibido era o não proibido”.

De “Os Sete Sacramentos do Abade”, “Matiangola e os Discursos Fúnebres”, “O Dia do Enterro de Matiangola”, “A Missão de não Morto”, “Necrology University”, “Matiangola e as Saudades da Morte”, “Uma Cidade Onde Não se Morre”, “Um Diálogo com os Mortos” a “Finalmente, a Minha Mulher Morreu” Nélio Nhamposse deixou um asqueroso retrato da condição dos mortos – ricos, pobres, mulheres e homens. Nas peripécias, Matiangola, que também faz o papel de personagem principal dos textos, abusa da morte, faz exigências, mas de uma forma efémera, pois o que ele consegue, na verdade, é o adiar da inevitável morte.

E explica-se: “A morte é minha e o enterro é meu. O azar é meu. Aliás, azar é trazer pastores não certificados para orarem a minha morte. Não quero. O falecimento é meu e os pastores também. Morram e escolham os vossos sacerdotes. Cada um cuida da sua morte e do seu sepultamento”. De todas as maneiras, a sua relutância serviu-lhe de grande coisa num ambiente em que se esperava pelo seu último suspiro.

Depois de longas horas, quase toda a noite, de amor com Julieta, sorrateiramente, o sentenciado à morte foge com a sua amada. Apercebendo-se, Phandava, quase às pressas, fez-se ao caixão e exclamou: “Não! Não pode ser. O morto desapareceu. Não pode ser. Procurem-no imediatamente. Ele deve morrer”. Volvidas duas horas, o acto estava consumado. Os forasteiros haviam partido para as terras inacessíveis.

Phandava convocou o conselho de culto para explicar e lamentar o facto. Mas, inesperadamente, alguém solucionou o problema: “Não te preocupes, ele até facilitou. Já está a caminho do trabalho. (…) basta só enterramos o caixão, ele estará morto. E mais, deve ser enterrado antes do amanhecer. Antes do nascer do sol, às seis horas, e dever-se-á fazer mhamba”. Com pompa e circunstância, por volta das três horas e trinta minutos, o caixão de Matiangola foi a enterrar e, pontualmente, às seis horas começou a missa do não morto.

Minibiografia

Matiangola nasceu a 23 de Novembro de 1983, no então distrito do Limpopo, actual Chókwé. Mestrado em Estudos Comparados – Literatura e Outras Artes pela Universidade Aberta, Nélio Nhamposse é licenciado em Ensino de Português pela Universidade Pedagógica e, actualmente, é coordenador da Juventude Associada para o Benefício de Moçambique, uma agremiação da sociedade civil que trabalha com crianças órfãos e vulneráveis, em parceria com a Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC).

É professor de Língua Portuguesa na Escola Secundária de Lionde e colaborou com os jornais “O País”, “Maratona” e “Negócios” como revisor linguístico, tendo também editado o semanário “O Nacional”. Tem textos (poesia, contos e ensaios) publicados nos jornais “O País” e “Notícias”, bem como nas revistas literárias “Nós” e “Literatas” e é membro do Movimento Literário Kuphaluxa.

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