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Em busca do cinema perdido

Em busca do cinema perdido

Esta é a aventura de Nuno, Miguel e do sr. Castigo entre milhares de carcaças de filmes no centro de Maputo. Um projecto pioneiro de cooperação com Portugal está a tentar salvar a memória do cinema em Moçambique.

Quando se vem da Baixa de Maputo, deixando o mar para trás, a Agostinho Neto é uma daquelas ruas em quadrícula, e o número 690 tem uma bandeira de Moçambique e letras vermelhas a dizer Instituto Nacional de Audiovisual e Cinema (INAC).
Parece um edifício um pouco estafado mas inteiro, com uma carrinha estacionada e nenhuma aparência de drama.
Mas lá dentro há quartos sem tecto, salas incendiadas, cozinha e copas roídas pelo tempo e pelos ratos – e 20 a 25 mil latas ferrugentas, cheias de ácidos e de fungos, onde se guardou toda a história do cinema em Moçambique, desde o tempo colonial.
Foi nisto que mergulharam de cabeça, muitas vezes com máscara, os dois enviados da Cinemateca Portuguesa, Nuno Barbosa e Miguel Azevedo, e com eles, dia-a-dia, o moçambicano Cristalino Castigo, uma lenda da casa.
Nuno e Miguel ainda não tinham nascido quando aqui era a Casa das Beiras e Castigo estava ao serviço dos colonos que vinham jogar sueca e comer bifanas. Agora trabalham os três juntos para que a memória literalmente não se apague, e o primeiro choque do visitante, esmagado por tanta carcaça de filme, é que isso parece uma missão impossível.

Nascimento de uma nação

À entrada, no átrio, há uma velha secretária com uma velha cadeira onde ninguém se senta mas um papel anuncia: “Informações.” À esquerda, um corredor, ao fundo uma porta aberta, e a partir daí máquinas em movimento, entre quilómetros de película.
“Esta é a nossa sala de trabalho”, apresenta Nuno, que tem ar de filósofo dos anos ´60 transplantado para os trópicos (caracóis, barba espessa, calça-calção). Os pais foram cooperantes no pós-independência, e em pequeno viveu em Maputo. Para todos os efeitos, é um regresso, um longo regresso.
No chão vêem-se pilhas de Kuxas Kanemas, os pequenos documentários em que o Presidente Samora Machel apostou, para levar notícias do nascimento da nação às aldeias, em projecções improvisadas (e aos quais a portuguesa Margarida Cardoso dedicou um belo documentário filmado aqui).
Numa das mesas de visionamento, Cristalino Castigo – para toda a gente aqui, sr. Castigo – vê um sarau dançante a cores e “a dois passos de Lisboa”, um dos filmes de actualidades que a metrópole enviava para Lourenço Marques. É bom sinal. Significa que o trabalho avançou: “Já acabámos a produção pós-independência, que foi a nossa prioridade, e passámos para os filmes portugueses”, explica Nuno.
O que o sr. Castigo está a fazer é uma identificação da bobina, e atrás das costas tem torres e torres de caixas novas.
No arranque da missão, em Fevereiro de 2008, as 20 mil ou 25 mil latas que se foram acumulando no instituto estavam cheias de película a decompor-se. Hoje, uma parte das bobinas está identificada, rotulada e guardada nestas caixas de plástico reluzente.
Não chega para salvar os filmes – talvez 2500 títulos – mas é o primeiro passo.
Entretanto, as latas continuam por toda a parte, nas salas e arrumos, enferrujadas e empilhadas como gigantescas moedas de ouro trazidas do fundo do mar.

Cozinha-laboratório

“Indicativo KK”, diz uma etiqueta (KK significa Kuxa Kanema).
“Neg. original KK 105”, diz outra etiqueta (ao todo, há 397 Kuxas Kanemas). E pelo meio uma etiqueta “hitchcockiana” a dizer “Sob o Signo de Capricórnio”.
Nuno agarra em duas máscaras que parecem de guerra química em versão BD e atravessa o átrio deserto, até à zona das traseiras. Paredes queimadas, um elevador abandonado, uma passagem escura, uma sala onde a única luz vem de uma lâmpada crua a zumbir, centenas e centenas de latas de bobinas dentro e fora de armários.
E a porta seguinte abre para um lugar sombrio, com paredes de azulejo e velhas máquinas com película ainda lá dentro, como se alguém tivesse transformado um talho numa câmara escura, e entretanto tivessem passado séculos.
“Aqui funcionava a cozinha da Casa das Beiras”, explica Nuno, mostrando as reentrâncias “por onde se faziam as entregas das bifanas e dos pregos”. Depois da independência, a cozinha passou a ser o laboratório do Instituto de Cinema, e ainda cá estão algumas máquinas, como esta de revelação.
Nuno puxa um filme e observa-o contra a lâmpada. Na sala seguinte há uma máquina de projectar coberta de válvulas saída de um filme de ficção científica dos primórdios. “Projectavam-se filmes lá em cima, onde agora não há tecto, e o Samora [Machel] vinha frequentemente vê-los.”
Mais corredores e arrumos cheios de latas. Mataram o Sonho do Patrício, Régulos da Rodésia, Eduardo Mondlane, Tourada.
Cheira a ácido. Todos os filmes estão em acetato, e este é o cheiro da degradação química que há-de devorar a emulsão, e com ela a imagem. “Foi por isso que trouxe a máscara”, diz Nuno, pondo uma e oferecendo outra. Há sapatos velhos, uma vassoura, caixas de cartão com bocados de película emaranhada como enguias, e de repente, no meio das latas, Acordo de Lusaka.
Mas muitas “não têm qualquer identificação, ou só números que não dizem nada”.
A sala contígua, que “estava cheia de Kuxas Kanemas”, agora alberga várias torres de caixas novas. Uma das etiquetas diz “Lixo Urbano, Um Problema de Todos”, que Nuno descreve como “um grande filme”, dos anos ´80. As prateleiras estão cheias de fitas magnéticas, sonoras, “já todas comidas por ratos.”
E ainda falta aquela sala onde repousam os restos de uma mesa de visionamento e Nuno remata: “Acho que morreu aqui um rato. Volta e meia sentimos o cheiro dos que morrem, e está a cheirar.”

A montanha de lata

Também há latas no pátio. São as latas vazias. Algumas estão enfiadas em estranhas estruturas de ferro, porque um artista plástico aproveitou para fazer uma instalação. Mas a maioria está mais à frente, contornando um anexo, e nem depois de ver o que viu o visitante ficou preparado para o que vai ver.
É uma montanha de latas de filmes, uma pirâmide dourada e ocre, com o sol a bater. Em suma, “o cemitério”, diz Nuno. “Todas as bobinas que estão nas caixas novas estavam dentro destas.”
Ao lado, operários constroem as estantes de metal onde as caixas novas vão ficar arrumadas.
Mas no tal anexo continuam centenas de bobinas dentro das velhas latas, que se vêem de fora, empilhadas contra os vidros, como prisioneiras.
Do pátio sobe-se para o primeiro andar, onde só restam algumas paredes de pé, agora amplamente grafitadas. Tudo o resto foi comido pelo fogo que subitamente, numa noite de 1991, deflagrou no Instituto de Cinema.
“Há quem defenda que foi fogo posto para apagar determinadas imagens”, conta Nuno, percorrendo as ruínas a céu aberto.
Pedro Pimenta – director do Dokanema, festival internacional de documentário de Maputo -, que acaba de chegar, não crê nessa hipótese. “Ouvi rumores de que seria uma tentativa de apagar imagens comprometedoras, mas aí o fogo não começaria no armazém dos filmes estrangeiros. Passados todos estes anos, continuo a achar que a versão do curto-circuito é a mais provável. A manutenção mais básica deixa de ser feita, há um período de decadência, o desleixo atingiu um pico.”
Pimenta viveu aquele tempo em que o Instituto de Cinema foi uma “epopeia very nice”, “assim com uma dinâmica, com uma febre”, e toda a gente a mexer. O poeta Luís Carlos Patraquim e o cineasta Licínio de Azevedo escreviam argumentos. Do Brasil veio Ruy Guerra. De Paris veio Jean-Luc Godard, na fé de que o puro cinema podia ser aqui. Nasciam actores, técnicos, realizadores no acto de fazer.
Isto durou 15 anos, de 1976 ao incêndio, que queimou todo o equipamento de produção e todos os filmes em distribuição.
Sobraram os filmes em arquivo, e são esses que se trata de tentar salvar neste projecto pioneiro, financiado pela Cooperação Portuguesa e desenvolvido tecnicamente pela Cinemateca, sob a coordenação de José Manuel Costa, um perito em conservação.

As três vidas do sr. Castigo

Se Pedro Pimenta se lembra daquele tempo “very nice”, o sr. Castigo, que é pai de seis filhos e avô de seis netos, lembra-se do tempo ainda anterior, não tão nice.
É o único nesta missão que pode contar como a sala grande onde agora trabalha todos os dias com Nuno e Miguel “era a contabilidade” da Casa das Beiras, e como, quando o Instituto de Cinema foi criado, os filmes positivos e negativos entravam e saíam da cozinha-laboratório pelo mesmo canal das bifanas.
Começou a trabalhar em 1972, aos 17 anos, miúdo vindo da província para Lourenço Marques. “Nessa altura a Agostinho Neto chamava-se 31 de Janeiro, e a minha tia trabalhava aqui. Por causa dela arranjei esse emprego na Casa das Beiras. Diziam que era uma associação das pessoas que vinham da Beira Alta.”
O sr. Castigo está a contar tudo isto no seu canto, que é uma parte de uma salinha no piso de cima, junto à biblioteca. À volta tudo é velho, a mesa ferrugenta sem nada em cima, a parede com um buraco, os gravadores de som Nagra. E Cristalino Castigo paira, suave e imune, um avô mas de braços e mãos jovens.
O que é que se fazia na Casa das Beiras? “Era um clube. Havia jogos de bilhar, de cartas, uma sala de café, outra para reuniões, grupos de folclore…” Baile de Carnaval, matraquilhos.
Ele estava “ligado à secretaria”. Era “um bocadinho polivalente, expediente, estafeta, distribuição de cartas aos sócios, arrumação das mesas nos bailes, tomar conta das salas de jogo”. Ganhava 150 escudos por mês.
Depois houve a revolução em Portugal, veio a independência, fundou-se o instituto. “Tomou-se isto e fechou-se. Ficámos do lado de fora à espera de orientação. Fiquei contente, mas também entre aspas, porque era uma satisfação em que a gente não sabia para onde ia.”
Depois Samora indicou o caminho. Nesse momento sem televisão, o Instituto de Cinema ia ser o grande divulgador. “Ele vinha para cá ver os filmes. Ah, é uma das pessoas que até hoje ficou no meu coração, apesar de a pessoa número um ser a minha mãe. Foi o grande impulsionador do cinema em Moçambique. A abertura para termos algumas coisas foi dele, e sentimos um grande vazio com a morte dele.” Uma queda de avião em que “o KGB esteve por trás”, ouviu o sr. Castigo na televisão.
Samora era “uma maneira de se comportar perante o seu povo, de conversar com qualquer pessoa”, e por isso valia a pena ir aos comícios. “Nos serviços diziam: amanhã é comício presidencial, e as pessoas devem ir.”
Entretanto Cristalino Castigo participava na adaptação da Casa das Beiras a Instituto de Cinema. “As máquinas dos laboratórios privados foram trazidas para aqui, de revelação, de cópia, colagem, bobinadeiras. Porque tudo tinha sido tomado.” Depois, ele próprio aprendeu sobre cinema com dois técnicos, quando o escolheram para trabalhar no laboratório. “Foi lá que me tornei homem. Nunca tinha pensado em trabalhar em cinema, mas aprendi para vencer. Na primeira semana pediram-me para revelar. Disseram: o negativo está aqui. E eu revelei e entreguei. A partir daí foi um baptismo.”
Arrancaram com os Kuxas Kanemas, em grande ritmo. “Até dispensava a minha família para segundo plano. Às vezes eu saía no meu horário, às 15h00, ia a casa almoçar, e às 16h00 já aqui estava outra vez. A minha área era ‘cozinhar’ tudo o que os outros traziam filmado.”
Até que houve o dia do incêndio. “Eram sete em ponto quando cheguei e começo a ver fumo. Vivia aqui uma senhora indiana e ela é que ligou para os bombeiros, mas quando apareceram já era tarde de mais. Fala-se em curto-circuito, tinha chovido toda a noite, a especulação é que a água atingiu o quadro. Eu não acredito. Mas se me falarem em sabotagem, acredito. Dentro da minha pessoa continuo a dizer que foi fogo posto.”
Se foi, a memória escapou, e é por isso que Cristalino Castigo aqui continua: “Esse material salvou-se.”

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