O livro “A Cidade Subterrânea” está cheio de cenários políticos e revolucionários. É como se o seu autor – mais de meio século depois – tivesse redescoberto o poder político da palavra na escrita, como no princípio foi o apanágio da literatura moçambicana. Mas, mais do que isso – diante da realidade da crise social em que vivemos – o autor, Élio Martins Mudender, chega e introduz-se na plataforma da literatura moçambicana com propostas formais: a oficialização da prostituição…
Na verdade, “A Cidade Subterrânea” é um retrato do desespero de um jovem universitário, recém-formado, que retorna à sua terra natal a fim de materializar um sonho antigo – explorar oportunidades de negócios –, como forma de operacionalizar o discurso propalado pelos governantes do seu país: “empreender para combater a pobreza absoluta”.Chegado ao aludido território, Quelimane, o jovem encontra a cidade totalmente arruinada. O seu sonho acaba por definhar ao recusar-se à obrigação de “ter num cartão vermelho o passaporte para se sair bem na vida”. Além de uma série de posições políticas, este romance e o seu autor chegam ao espaço social nacional com propostas formais: a oficialização da prostituição.
Assim, Élio Martins Mudender é um escriba que descobriu o poder político da palavra, como, nos seus primórdios, sempre foi o atributo da literatura moçambicana. Por essa razão, entre outras, a sua obra atrai leitores. A leitura do livro “A Cidade Subterrânea” é um instrumento suficiente para a compreensão da condição social dos moçambicanos. Uma razão é suficiente para fundamentar a constatação: o autor é nacional, as histórias que nos são familiares também, o que significa que a fonte de inspiração do autor é o seu país.
Talvez, a diferença desta obra não somente se traduz na denúncia que faz à nossa realidade, como também, e mais importante ainda, no convite para a necessidade de reflexão que daí se orquestra.
É nesse sentido que qualquer pessoa que tenha lido a obra, instantes depois se questione: – Será que o nosso destino, como povo, é tornar-se esta “cidade enterrada pela ambição desmedida de políticos ambiciosos e covardes que ao invés de se preocupar com o povo lutam para encher os seus próprios bolsos pisando com força, com violência e com amargura um esqueleto faminto chamado povo”?
Ou até que ponto nós, como povo, iremos permitir que o nosso bem-estar e sucesso nas actividades que desenvolvermos estejam sempre condicionados ao “ter o cartão vermelho”, o aludido “passaporte para se sair bem na vida”?
Em jeito de intróito, no seu texto que – aparentemente não respeita os sinais de pontuação – Élio Martins Mudender revela: “Não sei dar conselhos Nem dizer palavras bonitas Muito menos escrever versos de amor Mas sei alertar aos meus compatriotas que limpem a poeira dos seus sapatos para que não cometam erros políticos devastadores” (Sic.).
Na senda da agitação festiva típica dos dias do fim do ano, a personagem do “A Cidade Subterrânea” chegou à cidade de Quelimane num ambiente festivo. Mas “O meu gesto irritado me fervia do fundo do coração. O que me doía era o estado miserável. Moribundo. Abandonado. Empobrecido. Em que se encontrava a cidade e suas gentes”, escreve o autor para num outro desenvolvimento estabelecer o contraste.
“Uns poucos bairros elegantes desfilavam os seus 4x4s. Na sua maior parte eram estrangeiros e um punhado de políticos ambiciosos que, sem medir os seus interesses, pisavam brutalmente a população, que, indefesa, morria no desespero”. Assim era a vida da população: “Um povo desiludido. Cansado de falsas promessas” (Sic.).
Estrangeiro no seu próprio país
Em “A Cidade Subterrânea” fica claro que se o Governo não respeita os seus cidadãos, ninguém mais o fará. O que pode suceder é, no mínimo, a agudização da sua vulnerabilidade, fecundando todo o tipo de desrespeito por parte de cidadãos forasteiros.
“No salão de chá um estrangeiro insultava brutalmente um servente: “– Preto de merda. (…). Por isso nunca desenvolvem.” “– Eu vó chamar porícia.” “– Vai polícia, seu… Aqui ninguém me prende. A polícia daqui não funciona. Desde que o português foi embora essa merda está de mau a pior. Pobres de merda…” (Sic.).
A ruína em que a cidade da ficção de Mudender se havia tornado era tremenda. Por exemplo, “Um edifício de cinema, abandonado, estava barbaramente assassinado por Ladrões e Homens da Mafia da Igreja Universal do Reino de Deus! Não me admirei. Todos os edifícios deste país foram entregues a esses ladrões”. Foi desse modo que, naquela cidade, se instalou “O caos da incerteza de um destino e da miséria de um povo apunhalado pelos seus próprios governantes”.
Em dada ocasião, a personagem principal de “A Cidade Subterrânea” que dialoga com uma trabalhadora de sexo, Maria Consolo, leva a sua posição ao extremo a ponto de revelar que se sentia estrangeira na/da sua terra de origem. Não lhe faltam argumentos. “… essa país já foi vendido há muito tempo. Aos Chineses. Indianos. Aos Brasileiros.
Aos Portugueses. Aos Burundeses. Aos Nigerianos. Nem dá vontade de viver. (…) – Cheguei hoje. Como não há transporte, não pude ir a Domela. – Vergonha duma cidade. Nem estrada. Nem transporte. Nem emprego. Nem mercado. Nem nada… é só sofrer só. Os ricos cada dia mais ricos. Os pobres cada dia mais paupérrimos… mais um dia!…” (Sic.).
Legalizar a prostituição
Algumas pessoas pensam que “as prostitutas querem vida fácil”, mas se calhar nem é bem assim. Afinal, está-se diante de um sofrimento. “Mas fazer o quê? Há falta de emprego”. Além do mais “o que me irrita na prostituição é ter que se vestir e se drogar para enfrentar os clientes. A maior parte deles são rudes e brutos. Aguentá- los é o maior martírio que tenho vivido”, considera Maria Consolo.
O que mais preocupa esta trabalhadora do sexo é reconhecer que as prostitutas são escorraçadas e mortas, sobretudo numa situação em que a lei e os governantes são simplesmente indiferentes à sua actividade. “Mas para roubar votos. Para mudar a Constituição em benefício do partido, tudo é fácil. O que custa fazer uma lei viável para as pessoas praticarem as suas actividades à vontade? Legalizar a prostituição como acontece na França e Alemanha, por enzemplo” (Sic.), considera.
É nesse sentido que depois de considerar que “as prostitutas são muito influentes, conhecem grandes segredos do estado”, mais uma vez, Maria do Consolo – em “A Cidade Subterrânea” – irrita-se e leva a sua posição ao extremo: “Emancipação da mulher é discurso demagógico. Uma palhaçada. Sabes… aquelas mulheres que tu vês no parlamento e noutros postos a ocuparem lugares estão a ser usadas”.