Decididamente, há países que parecem terem sido abandonados por Deus. Na América temos Haiti, na África o Sudão e a Somália, na Ásia o Cambodja e na Europa a Polónia. No passado domingo mais uma catástrofe se abateu sobre o sofrido povo polaco: um avião que transportava o Presidente do país e a sua esposa, diversos membros do Governo, o governador do banco central e toda a cúpula militar, despenhou-se ao aterrar no aeroporto da cidade russa de Smolenski, matando todos os seus ocupantes.
Ironia das ironias: a deslocação destas altas individualidades destinavase a prestar homenagem aos cerca de 21 mil oficiais polacos fuzilados às ordens de Estaline em 1941 e enterrados apressadamente nas florestas de Katyn, crime que durante muito tempo foi atribuído ao exército nazi que tinha perdido a guerra. “Lugar sinistro” apressou-se, imediatamente, alguém com responsabilidades políticas a dizê-lo. É verdade que hoje Katyn está mais associado ao sofrimento do povo polaco mas tal facto deve-se, provavelmente, à frescura do tempo, uma vez que toda a história da Polónia está impregnada de dor e sofrimento. Encravada entre duas das maiores potências europeias – Alemanha do lado ocidental e a Rússia do lado oriental – aliás, militarmente falando, foram as duas maiores, pelo menos no século XX.
Por conseguinte, a Polónia deve o seu primeiro anátema à traiçoeira geografia, e por ela foi retalhada, desmembrada, aumentada e diminuída de acordo com as vontades e os caprichos das potências que a entrincheiraram. Entre os séculos XII e XIV, migraram para o que é hoje a Polónia os célebres cavaleiros teutónicos ocupando as melhores terras e desprezando quem lá estava. Construíram cidades inteiras e delas irradiou a cultura alemã. Depois vieram os judeus e povos do leste como ucranianos, bielorrussos, lituanos e russos, tornando o território uma miscelânea de etnias. Aliás, essa falta de coesão étnica, que se estendeu no tempo até à Segunda Guerra Mundial, foi uma das causas mais profundas dos acontecimentos históricopolíticos que sucessivamente foram perturbando.
Por fim, em 1795, a Polónia perdia definitivamente a sua independência, tendo sido repartida por três impérios: Prússia (mais tarde Alemanha), Áustria e Rússia. Esta situação iria durar mais de 120 anos, até nova independência. Mas, quando desde 1932 se procurava reconstruir num sector da Biblioteca Nacional de Varsóvia, um fundo cartográfico que testemunhasse a unidade e os valores da nação, veio o fatídico dia 1 de Setembro de 1939 que constituiu o tiro de saída na Segunda Guerra Mundial, com a invasão hitleriana da Polónia. Pouco depois, os velhos inimigos, Alemanha e União Soviética, firmam, pela calada, um pacto de não-agressão onde a Polónia é dividida ao meio. Até ao final do conflito os polacos vão sofrer como nenhum outro povo os efeitos devastadores da guerra. Vários campos de extermínio instalam-se no seu território e naquilo que ficou conhecido pelo gueto de Varsóvia, milhares de judeus são chacinados.
Pelo meio há episódios de grande panache da resistência polaca como aquela carga de cavalaria contra os panzers alemães naquilo que ficou conhecido como a última da história. No final do conflito, em 1945, Varsóvia era um monte de cinzas – foi a cidade mais arrasada na guerra – e a população polaca passara de 35 milhões em 1936 para 24 em menos de 10 anos.
Na divisão da Europa do pós-guerra a Polónia cai para o lado das ditaduras, entrando na esfera dos estados satélites da URSS. Naqueles primeiros anos a repressão é dura, principalmente com o Governo de Gomulka. E para os polacos o comunismo, devido à sua extrema fé religiosa, custa bem mais a digerir. E assim não surpreende que o movimento sindical, conhecido por Solidariedade, comece a mexer com o sistema. No início dos anos ´80, os protestos sobem de tom todos os dias e só a greve de fome do irlandês Bobby Sands consegue desviar, por uns dias, os olhos do mundo dos estaleiros de Gdansk onde Walesa tem o povo consigo.
Em 1983, é decretada a lei marcial, mas nessa altura a União Soviética vive já um estertor demasiado profundo para intervir. O último grande sofredor polaco, ironicamente, acaba por ser a maior figura da sua história: o Papa João Paulo II que atravessa uma profunda agonia física antes de morrer. Na manhã do último domingo, a Polónia, com a queda daquele Tupolev, voltou a experimentar mais um sofrimento colectivo.