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Duas anciãs, duas histórias de superstição

Não vamos publicar as suas fotos porque não as registámos. Por uma questão de ética. De respeito para com elas e para com os seus familiares. Os nomes também não virão, obviamente! Mas compartilharemos a história com os nossos leitores, como forma de os levar a navegar nas nossas raízes, e sentirem, dessa forma, o cheiro das feridas do espírito.

As duas vivem nos arredores da cidade de Inhambane, em casebres inóspitos, a caírem, como elas próprias estão em declínio. Uma é proprietária de um enorme terreno que está a criar cobiça pela sua esplendorosa localização geográfica, e a outra a única coisa que tem, aparentemente, é uma cubata desgraçada instalada num pequeno espaço onde avultam três campas que acolhem corpos dos seus familiares, e havia uma outra casinha feita de parra de coqueiro, mas foi recentemente devorada pelo fogo, sem que a mulher, nem os vizinhos, pudessem fazer algo.

O que se conta é que a dona do terreno, com uma vasta plantação de coqueiros, não quer ceder um milímetro aos que, precisando de espaço para construir, abordam-na com muitas notas de dinheiro na mão. Sempre que alguém for para ali com o propósito de negócio, será repelido. “Quem disse que eu preciso do teu dinheiro?”

Porém, olhando-se para a situação da senhora, o que se pode depreender é que ela vive numa situação deplorável. Tem filhos, tem familiares, mas ninguém a consegue persuadir a vender uma parte do seu terreno, por mais pequena que seja, para melhorar a sua situação social. As pessoas que a conhecem, ou que passam por ali e já ouviram contar a história, têm medo, inclusivamente de cumprimentá-la.

No meio de todo aquele coqueiral, numa altura em que as pessoas procuram cada vez com maior voracidade lugar para construir, emerge uma única palhota, onde vive uma única pessoa, uma anciã com imensas dificuldades para se manter. Todos os que falam deste assunto têm encontrado dificuldades para perceber as causas que poderão estar por detrás desta atitude.

Alguns dizem que o marido, antes de morrer, ou depois de ter falecido, terá deixado orientações expressas para que ninguém habitasse no seu espaço. E essas orientações estarão a ser escrupulosamente cumpridas por esta mulher que vai morrer pobre e desgraçada, quando tem tudo para mudar tudo na sua vida. Ninguém lhe consegue demover, nem os seus mais próximos, limitando-se apenas a assistirem ao sofrimento de alguém que provavelmente não mereça esse castigo. Assumido, com certeza, por ignorância. E enquanto a vida não a leva, ou não a abandona, o terreno está aí, subaproveitado, com as palmeiras ululando livremente.

Ao lado das campas

A que tem a cubata devorada pelas chamas está na mesma desgraça, mas contada numa outra versão. Aparentemente não tem terreno algum. Não sai de casa. Vive protegida pelos defuntos cujos corpos dormem ali mesmo, para sempre. Não fala com ninguém, ou se fala será com pessoas invisíveis, porque de vez em quando se ouve um tartamudear. Dizem, os que a conhecem, ou que ouviram falar dela, que tem filhos bem colocados na cidade de Maputo, os quais já tentaram levar a mãe para com eles viver na grande cidade, mas esta sempre se recusou.

Já lhe propuseram o melhoramento das condições de vida, construindo uma casa melhorada, mas a mulher não aceita. Desdenha viver em casa condigna. Na zona é acusada, embora não abertamente, de feitiço. Mesmo assim ninguém a molesta. Também os filhos – que a visitam regularmente – não deixam de trazer alimentos para manter a sua progenitora viva. E o que está subjacente, como no primeiro caso, é que ninguém consegue convencê-la a aceitar um novo rumo na sua vida. Para ela, a vida é aquela casa infeliz que a acolhe todos os dias, e as campas que a vigiam diariamente.

Aconselhado a não abordá-las

Já passei pelos dois locais algumas vezes, colocando a possibilidade de abordá-las e ouvir em primeira mão as suas histórias, mas fui desaconselhado. E eu limito-me a ver as duas mulheres a moverem-se na penosa posição de espinha dorsal irremediavelmente curvada. Não olham para as pessoas que passam.

Numas vezes vi-as sentadas preparando o manjar, e noutras, contemplei-as naquele movimento doloroso de quem jamais poderá ficar na vertical. Não insisti em penetrar nas suas casas para a conversa, porque há um ditado bitonga que diz, Waguembedwagupwa, wagusudzedwahethsa (Se tiveres ouvido, ouve. Se alguém peida na tua cara, cospe para o chão). Por isso mesmo, não fui mais além.

Mas estes episódios vêm-nos lembrar inúmeras histórias que se passam na cidade de Inhambane. Por exemplo, há muitos naturais daqui que não vêm à cidade há mais de 40 anos, mesmo estando no Maputo ou Xai-Xai. Têm medo do feitiço, supostamente promovido pelos seus próprios familiares. E quando em serviço não podem evitar viajar para a sua terra natal, fazendo de tudo para que os seus pais não saibam que estão cá. Ou, se o souberem, vão saudá-los, porém voltam, indo dormir no hotel. E isso é recorrente.

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