Herdino Polinésio suspeita ter nascido com um vírus, a sorte é que não se trata de HIV, mas de Literatura. No entanto, só há três mil dias – cerca de oito anos – decidiu encarar a realidade. Esparrama-se em todos os cantos em recitais. É um vício do qual não se consegue desprender…
Há vezes que, em função do temperamento é rebelde, revolta-se: “Os nossos programa-se televisivos são entupidos de intelectuais/ vivos nas utopias mas, mortos nas vidas reais/ Sopram palavras eloquentes/ Mas donos de actos doentes, incoerentes”.
E mais, para si, “Há coisas que já deviam ser ditas/ Sobre os escândalos dessas malditas/ Revoluções criminais do sexo mercantil”. Afinal, diz: “É nojento e meramente vil,/ Estas atitudes levianas tendentes/ A parir frutos inconsequentes ”.
Polinésio louva a sociedade quando bem encaminhada, mas não deixa de critica-la quando se entorpece. Neste exercício fá-lo partindo mesmo da célula: a degradação da instituição familiar.
“É vendedeira sem banca na rua./ Produto nato!/ Mamã deu licença a esta venda de facto!/ Cada um vende o que pode!/ Ter filhas é riqueza/ Filhos quebra, trazem pouco pão à mesa!”
Enfim, trata-se de “negativas metamorfoses mentais/ paridas por febres de meticais”, como Polinésio recita em saraus culturais da capital Maputo. É sobre estes, e outros, pontos de vista que, muito recentemente travámos uma conversa (amena) com Herdino Polinésio, um artista nato da palavra em acelerado processo de poetização.
Em processo de poetização porque ainda não tem livro publicado – falta-lhe financiamento para o efeito, as editoras moçambicanas ainda são repelentes quando se trata de obras de escritores jovens – mas enquanto isso não acontece, o artista não verga, até porque diante da realidade moçambicana contemporânea a sua missão não deixa de ser nobre: “operar (boas) transformações na sociedade”. É como mais adiante, levando o seu posicionamento ao extremo, afi rma: “sou um impulsionador de atitudes positivas”.
Na verdade, a poesia “infecta-lhe” a partir “desta necessidade contínua e constante em mim, de dizer palavras. De expressar os meus sentimentos, as minhas vontades e os meus pensamentos”, recorda-se. Na altura, há dez anos ou pouco mais, vigorava em Maputo um movimento simplesmente marginalizado, o Rap sobre o qual Polinésio tem o orgulho de dizer que se trata de “Ritmo e Poesia (Rap) ” – como de, facto o é.
Portanto, influenciado pelo Rap, Polinésio – à semelhança de tantos outros jovens – teimava em “dizer tudo o que me percorria a mente em jeito de crítica social”. O contrário não devia/podia acontecer, muito em particular porque na altura o Rap estava, essencialmente, ligado à crítica social, à necessidade de haver mudanças de comportamento na sociedade, sobretudo na camada juvenil.
Morto antes de nascer
Algum tempo depois, a intenção de mudar a mentalidade social, face aos desafios contemporâneos, viu-se ofuscada. Com a partida do companheiro de arte, Francisco Jorge, às terras lusas – onde, actualmente se encontra, “causou-se alguma nostalgia”.
“Mas comecei a estudar o ambiente em que me encontrava, até que compreendi que o Rap era uma forma de expressão musical que não era devidamente adoptada e respeitada. As pessoas que faziam o Rap eram tidas (quase) como marginais”. Consequentemente, “Não persisti em lutar para que o Rap fosse, algum dia, respeitado como o Azagaia e a Iveth (e tantas outras) envolvidas no movimento, o fizeram”.
Ora, “a minha postura não foi forçada. Houve circunstâncias que concorreram para o efeito: a minha irmã mais velha, CríliaChihale, era uma pessoa que lia e escrevia bastante. Tanto é que nós trocávamos livros, um dos quais “Soror Saudade”de Florbela Espanca, que é um livro de sonetos muito profundos. Em tal livro, Florbela expressa um amor, uma amizade frustrados”.
Surge-me, então, a poesia
Com a morte do Hip Hop – em Polinésio – nascia uma nova expressão artística, a poesia, mas com apenas um inconveniente: “A poesia não era uma expressão artística ofi cializada, como o Rap. Mas uma atitude (ainda em fase embrionária) impulsionada pela vontade de dizer coisas aos outros”, explica.
E mais, recusando-se a seguir um modelo pré-estabelecido, facto é que Polinésio escrevia poesia. Até que se apercebeu de que a sua musa – a escritora Florbela Espanca – explorava o esquema de 14 versos, os sonetos, o que infl uenciou a estruturar os textos quase da mesma forma.
Uma sorte ímpar
No entanto, além de contar com a infl uência dos textos da Florbela Espanca – para a formatação da sua poesia, ora em emergência – Polinésio acredita que contrariamente a muitos poetas, “tive muita sorte porque na altura, eu era vizinho da conceituada escritora moçambicana Lília Momplé, que considero a minha mãe literária”.
“Sempre que eu a procurasse seja com que tipo de versos e temática, ela dizia- -me que tinha que melhorar num e noutro aspecto e, sobretudo, que tinha o bichinho da poesia”. Ou seja, “ela foi a impulsionadora desta vontade, esta tendência natural que eu tinha. E eu comecei a ganhar pernas – não mais para o Rap, mas para esta manifestação posterior que é a poesia”.
Transformar mentalidades
Porque os tempos passam, as realidades e os desafios modifi cam-se. Que enquadramento dar às actuais tendências poéticas no contexto moçambicano? Polinésio pensa que as correntes que instam a que a literatura moçambicana tenha que ser como a do Craveirinha podem estar equivocadas.
Craveirinha “escreveu num contexto da temática colonial a favor da liberdade, mas nós não temos um colonialismo, provavelmente temos um neocolonialismo”. Como tal, “penso que a nossa poesia, na actualidade, se enquadra na necessidade de mudar as mentalidades, em função dos desafios hodiernos”.
Assim, o poeta deixa de ser, necessariamente, um romântico, mas uma pessoa sensível. “E eu sou uma pessoa sensível às questões sociais, às coisas que eu acho negativas. Mas também sou um impulsionador de atitudes positivas. Quando escrevemos um texto a falar das mães que madrugam com o bebé nas costas, um balde na cabeça, desloca-se para a machamba ou outro lugar qualquer para produzir, estamos a dizer que estas senhoras são exemplares. Que possuem uma atitude socialmente salutar. Então devem ser estimuladas.”
Muitas incoerências à mistura
Para Polinésio, apesar de a imprensa contribuir bastante para o desenvolvimento social, bastas vezes, tem sido falsa em tal processo. Quando assim se comporta, o artista contesta.
“É que a televisão utiliza pessoas intelectuais, como líderes de opinião, ou construtores da opinião pública. Tais pessoas constroem um pensamento, uma atitude – que deve ser seguida pelo povo. No entanto, no seu dia-a-dia, eles não vivem de acordo com tais preceitos. Ou seja, em conformidade com o que dizem. Não implementam o que dizem. São incoerentes.”
Então, “a minha reclamação neste poema é mais virada para a necessidade de as pessoas começarem a dizer, mas também a fazer o que dizem. Nós não devemos deixar que a imprensa nos bombardeie, quando (simplesmente) ela só quer construir a nossa maneira de ser e estar – na sociedade – em função dos seus objectivos!” Melhor ainda: “não devemos ser intelectuais do falar – para mudar a cabeça dos outros – mas, acima de tudo, devemos implementar o que dizemos na realidade”. Afinal, “não estudamos simplesmente para dizer que o fizemos.”
E assim se perdem as referências
Polinésio volta a atenção não para, mais uma vez, tecer críticas à sua inefi cácia nalguns aspectos sociais, como, por exemplo, “quando a televisão bombardeia as pessoas com produtos que não levam a sociedade a um bom porto, em termos de exemplos a seguir”. Uma das lacunas – da imprensa televisiva moçambicana – é que “nós não temos programas de literatura a sério. A televisão não se interessa pela literatura. Aposta, pura e simplesmente, na música”.
Como é que as pessoas terão as referências certas? “Terão ídolos – errados para mim – em termos de utilidade. Porque nós estamos a viver somente do agradável, desprovido do útil. O útil – na área televisiva – também seria a inclusão de programas de literatura, de fortes documentários científi cos e aí por diante”.
A consequência imediata é quea sociedade reclama que os jovens não têm referências. Que gostam somente do Ziquo – por exemplo. Mas “mas como não gostar se é o que mais se difunde para ser apreciado? Não há referências. É preciso que haja referências – em tudo – e que sejam divulgadas ao nível da imprensa, porque elas impulsionam a atitudes positivas”.
Um sonho antigo
Quando Polinésio – nascido a 12 de Outubro – decidiu sacrifi car a música pela literatura prenunciava também um grande sonho: publicar um livro. O devaneio ganhou consistência. De maneira que “desde sempre tenho-me organizado para o concretizar”. Facto, porém, é que durante o percurso, “recebi conselho de pessoas que diziam Polinésio não se precipite! Argumentavam que editar um livro não é grande coisa”.
Nos dias que correm, a (sua) pretensão de publicar “as negativas metamorfoses mentais” em livro vem sendo ofuscada devido à falta de financiamento.
“As editoras dizem que não têm fundos,meios para a publicação da obra”, queixa-se. O que dito em outras palavras significa que são os escritores que no lugar de produzir obras artísticas, devem também ocupar-se da angariação de financiamentos para a publicação dos livros. “O que para mim, não é correcto”.
Ser artista – uma opção arriscada
Fora do glamour, do respeito, bem como a celebridade que os artistas granjeiam na sociedade, o nosso interlocutor chama a atenção dos riscos que a arte pode acarretar para a vida do artista.
Sobretudo quando “o artista não souber gerir a fama, gerir as coisas primordiais da sua vida privada, logicamente, arrastado pelo glamour e pela fama acaba por se confundir. Metendo-se em vícios, em fornicações, adultérios”.
E mais: “noto que é fácil ser assediado quando se é artista. Equivocadamente, as pessoas pensam que nós somos as pessoas mais perfeitas do mundo”. Então, “nós, os artistas, não devemos permitir que a fama nos suba à cabeça, sob pena de – como temos visto – sermos prejudicados ou, pior ainda, até mortos pela fama”.
Uma questão profunda
Ainda que de facto os gostos sejam relativos – pelo menos partindo das pessoas que em espaços culturais como o ICMA apreciam as suas obras – pode-se afirmar que Polinésio escreve uma poesia encantadora. E, por conseguinte, passível de ser laureada em concursos literários.
No entanto, mesmo assim, o artista nunca participou em nenhum concurso literário. “Há uma questão que é profunda em mim. Como, por exemplo, quando se diz que naquele grupo de jovens, nenhum tinha qualidade. Imagina se eu estivesse no meio de tais jovens – penso que seria uma grande desmotivação”.
Então, “penso que ganhar é, sim, uma motivação, mas perder é uma grande desmotivação. Por isso, trabalho no sentido de publicar a minha obra, dentro das dificuldades e facilidades do quotidiano”, finaliza.