Jorge Mamade, um dos mais célebres cantores que a província de Sofala produziu no século XX, considera que o mecenato cultural na cidade da Beira é inexistente. No entanto, na sua visão, enquanto não se utilizarem os protagonistas da pirataria no seu combate, a indústria musical nacional continuará uma miragem no país.
A campanha da apreensão, recolha e incineração de fonogramas, videogramas, bem como de materiais afins (computadores, CD´s, por exemplo) aplicados na produção clandestina de obras de arte, que o Ministério da Cultura instaurou no ano passado merece o elogio dos moçambicanos. Ela teve o me?rito de revelar-nos até que ponto a nossa indústria musical é deficiente.
De uma ou de outra forma, o conceituado músico moçambicano Jorge Mamade considera que enquanto o Governo não utilizar os cidadãos moçambicanos que encontram no comércio de discos contrafeitos para o seu combate jamais serão reduzidos os problemas de que a classe dos músicos se ressente no país.
Mamade teceu esse comentário quando solicitado a analisar as vantagens da criação do Ministério da Cultura no mandato em curso. Aliás, um pelouro dirigido por um ministro artista, Armando Artur.
Em jeito de analepse, o artista recuou no tempo para afirmar que se recorda de que “no início o ministro da cultura Armando Artur fez uma auscultação em todo o país com o objectivo de perceber a realidade dos artistas assim como das actividades culturais. Ora, a questão que se coloca é qual é o retorno do trabalho feito?”
Para si, “é necessário que se preste atenção para o facto de todos nós, os artistas, termos muitas necessidades. Por isso, trabalhamos muito no sentido de satisfazê-las, o que ao nível das artes se reflecte pela grande produção”. Em contra-censo a isso, “não estamos a render nada embora produzamos muito”.
Como tal, penso que “o pacote orçamental do Ministério da Cultura devia apoiar os artistas, de certa forma, o que não está a acontecer”, afirma remetendo-nos à campanha do combate contra a pirataria iniciada pelo Governo no ano passado. Na sua análise, “está-se a gastar recursos financeiros no entanto, os seus resultados não são notáveis”.
Ademais “e? verdade que o Ministério da Cultura pode, de tempos em tempos, publicar informações segundo as quais foram apreendidas e incineradas inúmeras quantidades de objectos culturais derivados da indústria da pirataria, mas isso não combate o problema”.
Uma nova estratégia
Conforme o pensamento de Jorge Mamade, é possível que os artistas demandem, cada vez mais, dividendos do combate contra a pirataria (uma prática que, associada à falta de editoras discográficas no país, dificulta o desenvolvimento da vida dos cantores) desde que se crie uma estratégia eficaz e bem implementada para o efeito.
Por isso, “devia-se criar um regulamento no qual se atribuiria aos revendedores do material discográfico um cartão de identidade comercial. Ou seja, um instrumento que lhes conferisse a categoria de revendedores autorizados, o que lhes confere o direito de comprar discos originais a um preço acessível, de modo a comerciarem no mercado informal como habitualmente o fazem”.
Essa seria uma (boa) forma de não somente lutar contra a contrafação, como também de reeducar a sociedade, um hábito que por sinal já não se possui, o consumo de bens genuínos.
Trata-se de um procedimento que pressupõe a criação de uma base de dados que possibilitaria o acesso de informação sobre quantas pessoas trabalham no comércio discográfico no país, do mesmo modo que seriam estimulados a distribuir no mercado produtos genuínos, por um lado, o que contribuiria para que ficasse claro para a sociedade moçambicana que se deve consumir bens genuínos, legais e sem mácula, por outro.
Assim, acredita Mamade, que “estaríamos a retirar aquele cidadão que ? por força das circunstâncias ? é impelido a incorrer na prática de negócios clandestinos, ao mesmo tempo que iríamos fazer do mesmo um elemento potencialmente forte para combater eventuais infractores em defesa do seu negócio por meio da denúncia”.
Noutro desenvolvimento, Mamade levou o seu posicionamento ao extremo para defender que “todo o moçambicano deve ter em mente a sua nacionalidade e defendê-la, numa postura que se pode reflectir também na música”.
Por essas razões, “devemos proteger a nossa canção, porque ela é a melhor do mundo”. Até porque nós, os músicos moçambicanos, temos talento suficiente para nos sobrepormos em relação aos artistas de outros países. Se conseguirmos fazer isso, não tardaria muito para que, caso venham bandas de outros países, reconheçam a nossa mestria, em termos de produção musical”.
Não teremos espaço para encarcerá-los
Mais importante ainda é que, em relação à música, por exemplo, “nós os artistas não podemos parar de oferecê- la ao consumidor porque existem reprodutores e/ou comerciantes que, agindo de má-fé, exploram o génio artístico alheio para, de forma desonesta e ilegal, tirar dividendos”.
Pior ainda, “penso que se fosse para encarcerar todo o pessoal que dinamiza a indústria da contrafação de fonogramas, as nossas cadeias não teriam capacidade para acolher a todos. Não teremos penitenciárias para encarcerá-los. No entanto, diante disso, que mecanismos estamos a criar?”.
No seu ponto de vista, “o Ministério da Cultura devia trabalhar com todas as editoras (na verdade não chegam a cinco) que temos, no sentido de elas criarem sucursais em todo o país. Elas deviam firmar contratos profissionais com os artistas como forma de remontar a máquina da indústria musical, promovendo a venda corrente da música de novo”.
Numa situação em que o mercado moçambicano está infestado de revendedores de produtos não genuínos seria muito importante não retirá-los da sua actividade. Mas, contrariamente à forma clandestina como o negócio é feito presentemente, o aparelho da indústria cultural devia reaproveitá-los para, desta vez, promover o comércio de bens genuínos e que tenham o selo de autenticidade.
Enorme carinho por eles
Jorge Mamade é, como deve-se saber, um cantor com um percurso artístico notável. Tem trabalhado continuamente com bandas musicais da cidade da Beira, algumas das quais contaram com o seu apoio para se projectarem no mundo.
Como tal, questionado sobre o trabalho de passagem de testemunho à nova geração de cantores, Mamade respondeu nos seguintes termos: “Na cidade da Beira, há muitos músicos jovens que nasceram nas minhas mãos. Por isso o meu carinho por eles é enorme. Já acarinhei muitas bandas no processo do seu desenvolvimento, de tal sorte que algumas cresceram, outras ainda representaram o país nos festivais internacionais de música, como, por exemplo, o Festival Internacional de Música Crossroads”.
Trata-se de formações musicais como Nfithe, Nyasha e Mussodji com as quais Mamade realizou digressões por algumas partes do mundo com destaque para países como Zâmbia, Tanzânia e República Dominicana.
Entre os anos 1998 a 2010, Jorge Mamade foi guitarrista da Banda Rastilho. Mas o seu envolvimento nos trabalhos musicais colectivos é mais antigo ainda. Por isso, o artista revela que não notou grandes diferenças quando, em 2003, gravou o seu primeiro álbum a solo, Malária Nga Apere, que significa Que a Malária Acabe, em relação ao trabalho que habitualmente fazia sobretudo porque “sempre fui um artista de banda. Estive em contacto com vários cantores e instrumentistas, o que e? diferente de um artista que só ensaia com a banda para gravar um álbum”.
Refira-se que a banda Rastilho teve um papel importante na projecção de muitos artistas da cidade da Beira. “Recordo-me de que durante a realização de trabalhos de gravação discográfica, alguns artistas não compareciam na hora aprazada para a banda acompanhar- lhes. Por isso, aproveitando-se de tal atraso/ausência alguns mu?sicos solicitavam-nos para acompanhá-los. Foi assim que acabámos por apoiá-los”.
A música deve ser completa
Um aspecto peculiar nas composições musicais do grupo Rastilho ou dos cantores beirenses é a componente didáctica que possuem. Nesse sentido, o nosso interlocutor explorou o contacto com @Verdade para não somente contar o segredo do mérito, a luta pela educação da sociedade, como também realçar o esforço que tem desencadeado no sentido de perpetuar esta tendência no seio dos novos cantores que se formam nos dias actuais.
“Temos aconselhado a todos os artistas que trabalham com a nossa banda no sentido de criarem músicas completas. Ou seja, o enredo ou a narração do facto que se quer cantar deve ter uma introdução, uma evolução da história, assim como possuir uma conclusão clara. Isso é importante porque uma mensagem bem estruturada, com todas as partes bem definidas é muito mais proveitosa para a construção duma sociedade com valores. Afinal as pessoas, ao escutarem a música, serão bem orientadas”.
Mamade congratula-se com o facto de “os artistas com que temos trabalhado cumprirem devidamente as (nossas) orientações até os dias actuais. Mas acima de tudo porque sempre tivemos o cuidado de lhes explicar que tais pormenores didácticos são essenciais”.
Por exemplo, “se o artista quiser falar da sua avó, deve explicar a importância da referida figura para o seu desenvolvimento como pessoa. A importância dos mimos, do carinho, da educação que dela recebeu na formação da sua personalidade. E não vilipendiar os idosos na música como, muitas vezes, acontece no nosso espaço social”.
“Tenho em mente que houve jovens cantores que, nesse processo, tiveram problemas na elaboração da música. Como tal, nós, os artistas mais experimentados, intervimos no sentido de auxiliá-los na composição, bem como na orquestração da canção”.
Mais importante ainda é que, inevitavelmente, “os nossos traços artísticos reflectem-se nas composições, assim como nas suas interpretações musicais. Por isso, as pessoas, bem entendidas na música, reportam tais rastos que os jovens herdam. Isso sucede porque damos tudo de nós, incluindo a linha melódica. Consequentemente, o feito completa algo naquilo que o artista transmite ao público em relação ao seu mestre, assim como para com a banda”.
Crescer sem espaços recreativos
Se Jorge Mamade pode congratular-se com as tendências de evolução económica da cidade da Beira, desengane-se quem pensa que o esquecimento que o Governo local tem em relação à criação e manutenção de infra-estruturas sociais, como jardins, complexos desportivos, espaços para realização de eventos culturais, é do seu agrado.
Por isso, diz ele, “a Beira está a crescer, mas quero dizer que quando fazemos uma cidade evoluir, devemos ter em conta que ela deve possuir espaços recreativos e de diversão. Estou a falar de campos de futebol, jardins, espaços culturais, assim como praças”.
Infelizmente, contrariamente a isso, “sucede que na Beira as nossas praças estão a ser transformadas em locais, unicamente, de lazer. Elas estão a perder muito de salutar para a dinâmica de uma cidade, o que não deve ser assim”.
“Se formos a analisar notamos que já não temos locais para realizar cerimónias festivas, como, por exemplo, casamentos, baptizados, para tirar fotografias, criar postais na cidade. Tudo isso está a desaparecer”.
Mais importante ainda “é urgente que sempre que os dirigentes atribuem terrenos aos cidadãos tenham em mente as suas características geológicas. Ou seja, tomar-se em consideração que a cidade está muito abaixo do nível das águas do mar. E que, por isso, a qualquer momento, as águas do mar se podem alastrar à terra firme. O Conselho Municipal não está a ter em conta a esses factores”.
De qualquer modo, “isso não retira em nada o mérito do trabalho feito pela edilidade local. Aliás, nos dias actuais, estão a surgir muitos projectos ambiciosos de construção civil na urbe”.
Estarei eternamente grato!
Entre os momentos mais memoráveis do percurso artístico de Jorge Mamade pode citar-se a sua eleição pelo Ngoma Moçambique como vencedor da categoria Imprensa, em que recebeu uma guitarra do referido certame.
Nos anos seguintes teve a oportunidade de representar a província de Sofala no programa Masseve organizado pela Televisão de Moçambique. É que, segundo conta, no referido evento, “os artistas não tinham direito a cachet. Dizia-se apenas que havia surpresas. Realizámos uma actuação na penúltima semana de Dezembro e, surpreendentemente, deram-me um congelador, o qual dediquei à minha filha que completava anos no dia do Natal.
De qualquer modo, Jorge Mamade não se esquece da altura em que, aos 44 anos, no ano 2006, o artista ficou gravemente doente. Para si, esta experiência mantém-se inolvidável porque, “senti que da mesma forma que eu apoio os demais cantores nos seus pesares, eles souberam fazer o mesmo comigo”.
A empresa dos Caminhos-de-Ferro de Moçambique (CFM), ao nível da província de Sofala, apoio-lhe. “Não posso esquecer-me desse episódio porque esta instituição não somente foi solidária comigo pelo facto de ser artista, mas também porque sou um cidadão beirense. Penso que se tratou de uma atitude exemplar de solidariedade”, diz.
Refira-se que Mamade possuía uma pedra na vesícula, de tal sorte que teve de sofrer uma cirurgia. Caso contrário, diz, “eu podia ter perdido a vida sobretudo porque não sabia do que e? se tratava. Fiz uma ecografia em que se apurou que eu tinha uma pedra no organismo”.
Por isso a solidariedade de organizações como a empresa Caminhos-de-Ferro de Moçambique, bem como dos artistas em geral foi essencial para salvar a sua vida.
Quem é Jorge Mamade?
Filho do casal Aibo Assane e Mirima Arune Nur Mamade, Jorge Mamade nasceu na província de Sofala em 1962. Durante muitos anos trabalhou com uma das mais notáveis colectividades musicais da cidade da Beira, a Banda Rastilho. Malária Nga Apere que significa Que a Malária Acabe é o título do seu primeiro trabalho discográfico a solo editado e publicado no ano 2003, com 11 faixas musicais.
Tem na música a sua principal área de actuação social. Presentemente possui um estúdio de edição de imagem, na cidade da Beira. Planifica publicar mais um trabalho discográfico ainda este ano. Mas o feito está condicionado à boa vontade dos mecenas culturais.