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Com saúde também se morre

ESTADO DA NAÇÃO REAL: Saúde de “vergonha”

A diferença entre a vida e a morte é uma linha invisível. Porém, em Moçambique essa linha mata muito mais do que dá vida. O encurtamento de rotas, ainda que superficialmente, contribui para o incremento dos números de cadáveres que passam pelas casas mortuárias. A natureza dos bairros periféricos também semeia tragédias agravadas por um serviço de primeiros socorros inexistente. Assim é Moçambique…

Maria, nome fictício, foi morar com o marido num bairro sem vias de acesso. Foi o único espaço que encontraram para erguer uma casa do tipo 1. Não foi fácil porque o espaço, embora a terra não se venda por lei, custou 12 salários mínimos ao seu marido, trabalhador de uma empresa de segurança privada. Efectivamente, o companheiro, com quem vive numa relação de facto, aufere 2500 meticais, o salário mínimo do país.

Maria, conta, teve uma experiência que lhe corta o coração. Teve de enterrar um filho por uma conjugação factores. Ou seja, mora longe da estrada (cerca de seis quilómetros para o interior do bairro) e não há, diga-se, nenhum meio de transporte que encurte tal distância. A estrada, de terra batida, inibe qualquer viatura de fazer o trajecto.

Cruel destino

Maria não tem, para além de uma porção de terra, onde planta amendoim e outros produtos, nenhuma fonte de rendimento. Num dia em que o sol ia alto, Joãozinho, único filho do casal, passou mal. Longe de estrada, Maria colocou o filho nas costas e percorreu seis quilómetros debaixo de um sol intenso. Chegou à paragem e ficou mais uma hora, enquanto isso via o seu filho morrer nos seus braços. “Eu queria parar o tempo, mas não tinha como.

Não tinha ninguém para me ajudar. O meu marido estava no serviço e nem tinha como falar com ele”. Ainda que fosse possível entrar em contacto com o companheiro, João não podia fazer nada. Está afecto a uma empresa em Boane e o seu turno é de 24 horas. Só tem direito a um pão e mais 24 horas de folga. Ou seja, era impossível, para João, socorrer o filho.

Ciente de tudo isso, Maria queria chegar ao hospital mais próximo. Apanhou três “chapas” devido ao encurtamento de rotas. Efectivamente, Maria andou seis quilómetros a pé e subiu três autocarros. Levou três horas para percorrer uma distância de menos de 20 quilómetros. Resultado: viu o filho morrer nos seus braços sem que ela pudesse fazer algo.

Maria, diga-se, não é a única vítima dessa conjugação de factores. Há quem consiga chegar ao hospital, mas morre antes de ser atendido. As estatísticas do Ministério da Saúde não têm em conta pessoas como Maria, cujos parentes morrem fora das portas de uma unidade sanitária, mas isso não significa que elas não existam.

Enchentes nos centros de saúde

Na semana passada, a nossa equipa de reportagem visitou o Centro de Saúde de Ndlhavela e encontrou doentes estatelados nos corredores à espera de um atendimento que nunca mais chegava.

Outras pessoas há que, para evitar a demora no atendimento, chegam o mais cedo possível. Gilda Tivane, de 47 anos de idade, é um exemplo disso. Reside algures no coração do bairro Ndlhavela. No fim-de-semana Gilda estava febril e com fortes dores de cabeça. Pensou que fosse algo passageiro, mas os sintomas pioraram no domingo.

Na segunda-feira não viu outro remédio senão visitar o centro de saúde mais próximo. Conhecedora da morosidade do atendimento, Gilda chegou ao centro de saúde da Polana Caniço às 4h30 e encontrou nove pessoas à frente de si.

“Sou a décima pessoa, começaram a atender-nos pouco antes das 9 horas, mas eles começam tarde com os atendimentos, sempre”, conta Gilda, acrescentando que “são 11 horas e ainda não fui atendida, desde que cheguei aqui de madrugada ainda não comi sequer alguma coisa. O pior é que o atendimento tem sido muito moroso, às vezes os enfermeiros proferem palavras injuriosas contra nós (os pacientes) quando reclamamos”.

Esta paciente afirma que são poucos os hospitais que atendem bem os pacientes e/ou utentes. Os agentes de saúde (salvo raras excepções) podem ser tecnicamente bons, mas falta-lhes uma coisa: a sensibilidade e senso humano, não sabem lidar com aqueles que merecem todo o carinho possível, uma vez que se encontram numa situação de enfermidade.

Outro utente com quem a nossa reportagem pôde falar foi o jovem Almeida Baptista, o qual referiu ter perdido uma menor de idade (2 anos) no leito do Hospital Geral de Mavalane.

“A criança estava gravemente doente, apresentava batimentos de coração fora do normal e estava com uma temperatura alta. Chegámos no hospital por volta das 7 horas e só fomos atendidos perto das 12 horas”, afirma ajuntando que a criança começou a piorar nas mãos do médico, quando tentava aplicar o soro, ela ficou num silêncio total, já não conseguia chorar, minutos depois o agente de saúde disse que a menor tinha perdido a vida.

Mortes que podem ser evitadas

Baptista não descarta a possibilidade de a morte da sua filha ter sido precipitada pelo moroso atendimento, pois a criança levou muito tempo nas mãos dele (o pai), clamando por uma intervenção médica. “É verdade que do destino não se foge, mas neste caso e noutros o mesmo pode ser evitado. Quando é assim, temos que atribuir a responsabilidade aos agentes da saúde que, movidos pela negligência, assistem impávidos e serenos ao sofrimento de milhares de moçambicanos junto aos hospitais.

Já no Centro de Saúde da Machava I, algures no município da Matola, a realidade desumana vivida pelos pacientes é quase a mesma que se pode constatar um pouco por todo o país.

Para começar, aquela unidade sanitária, à semelhança de tantos outros espalhados pelo país, não tem bancos suficientes que possam responder à demanda dos pacientes e utentes que diariamente escalam aquele local, consequentemente os pacientes espalham-se pelo chão, as senhoras estendem as suas capulanas e deitam-se.

Isabel Tovela, de 35 anos de idade, vive no bairro do N’Kobe e este centro de saúde é o mais próximo.

“Eu cheguei aqui às cinco horas, mesmo assim vim apanhar uma fila que não esperava, estavam aqui mais de 20 pessoas. Há pessoas que quase passam toda a noite aqui para garantir que estejam à frente na fila”, conta acrescentando que desde as 8h30, altura em que começaram a atender-nos, só tinham chamado duas pessoas, “agora são 12 horas e só atenderam metade dos que vim aqui encontrar. Há pouco menos de 40 pessoas que me seguem e duvido que sejam atendidas ainda hoje”.

Tornar mais humano o atendimento nos hospitais

Com o objectivo de conferir maior qualidade e humanização ao atendimento aos utentes juntos às unidades sanitárias do país, o Ministério da Saúde levou a cabo uma capacitação subordinada ao tema “Qualidade e Humanização nos cuidados de saúde”.

Segundo a directora do Programa Nacional de Qualidade e Humanização dos cuidados médicos no Ministério da Saúde, Ana de Lurdes Cala, o programa tem em vista a melhoria da assistência dos serviços de saúde aos utentes ou pacientes. Para Cala, qualidade significa eficiência e eficácia baseadas no conhecimento e a humanização passa pela valorização do trabalho e do trabalhador, atendimento digno ao utente, enfim, o respeito pelo valor da vida humana.

O que se pretende é munir os membros de Comités de Qualidade e Humanização de ferramentas tendentes à melhoria da assistência prestada aos pacientes e utentes das unidades sanitárias.

Para Ana de Lurdes Cala, a qualidade dos serviços prestados nas unidades sanitárias do país tende a melhorar. Para tal concorre o facto de estarem a ser capacitados ou formados agentes da saúde para que saibam como lidar com os pacientes e utentes que procuram os serviços sanitários ou os médicos.

“Já houve tempos em que éramos muito criticados devido à má prestação dos nossos serviços aos pacientes. Agora temos envidado esforços para ultrapassar a situação, mudando e melhorando as atitudes dos nossos agentes”, ajunta.

A nossa interlocutora reconhece que ainda existem alguns agentes de saúde, cujo comportamento e relacionamento com os utentes e pacientes não são saudáveis. “Há aqueles agentes de saúde que tratam mal os doentes, não raras vezes proferem palavras injuriosas contra os utentes. Isto acontece na verdade, mas são casos raros e que tendem a ser ultrapassados”, acrescenta.

No que concerne ao atendimento moroso ou tardio nas unidades sanitárias do país, Ana de Lurdes Cala disse que essa demora tem de ser vista não como uma mera vontade dos agentes da saúde, mas como resultado da crescente demanda pelos serviços de saúde no país. Aliás, a cada dia que passa cresce o número da população e paralelamente aumenta a pressão sobre os agentes.

“Mais ainda, existem aqueles pacientes que marcam a consulta para uma determinada hora e aparecem numa outra, isso acaba por complicar o trabalho dos profissionais e agentes da saúde”, aponta.

1893 hospitais para 22 milhões de habitantes

Dados do Ministério da Saúde a que a nossa reportagem teve acesso dão conta de que em todo o país existem quatro níveis de atenção de saúde, nomeadamente o nível quaternário que engloba quatro hospitais centrais, nível terciário que abarca sete hospitais gerais, o nível secundário que comporta os hospitais distritais e rurais num universo de 49 e primeiro nível primário que engloba os centros e postos de saúde.

No total, em todo o território nacional existem 1893 hospitais para uma população estimada em cerca de 22 milhões de habitantes.

“Ainda falta muito para termos um serviço de primeiros socorros”

Noutros países do mundo, o sistema de saúde possui ambulâncias para o transporte de doentes das suas casas para o hospital. A pessoa só tem de ligar para o serviço de emergência que destaca os agentes do serviço de saúde que vão ao encontro do cidadão. Para o nosso caso, as pessoas não precisariam de permanecer horas nas paragens à espera que um “chapa” apareça e que este o leve ao hospital.

Sobre este assunto, tentámos ouvir o Ministério da Saúde (há mais de um mês) mas não tivemos nenhum esclarecimento alegadamente porque a instituição está sem porta-voz.

Entretanto, um médico por nós ouvido confidenciounos que as ambulâncias que existem no país só servem para transferências inter-hospitalares e que o país ainda está longe de ter um serviço de primeiros socorros (eficaz). Apenas os privados é que oferecem tais serviços.

“As ambulâncias que existem nos hospitais são para transferir doentes de uma unidade sanitária para a outra, como o doente chega ao hospital não interessa. Quem autoriza a transferência é o hospital, sob recomendação do médico. Isso acontece quando o doente está num estado crítico ou quando o hospital chega à conclusão de que não está em condições de o internar ou prestar a assistência adequada. Podem também ser usadas em casos de acidentes”, explica.

Por mais que existisse no país um serviço de primeiros socorros, este funcionaria com dificuldades pois os nossos bairros não estão ordenados, e poucos têm ruas por onde uma ambulância possa passar.

Ademais, é necessário que haja estradas maiores que as actuais para que as ambulâncias circulem com facilidade e automobilistas mais disciplinados pois, não raras vezes, os motoristas das ambulâncias têm de “pedir” para passar.

“Passamos mal, principalmente nos semáforos ou quando há engarrafamento. Os automobilistas e os “chapeiros”, em particular, (já) não têm sensibilidade. Somos obrigados a tocar a sirene e estarmos sempre a pedir para passar. Não sabem que um segundo é suficiente para uma pessoa morrer. Mas a culpa não é só deles. As nossas estradas são pequenas, outras só têm uma faixa. Na maior parte dos casos a mesma faixa serve de paragem”, diz o médico.

Em relação ao mau atendimento ou feito tardiamente, o nosso interlocutor considera que é algo que tem a ver com o comportamento de cada um, embora também atire culpas ao ministério de tutela.

“Esse é um problema que afecta o sector da saúde mas, infelizmente, vai ser difícil resolvê-lo sem a mão dura de quem de direito. Para além do controlo dos funcionários da saúde, é necessário que se crie canais através dos quais os utentes possam denunciar. Os actuais não funcionam.

Há médicos, agentes de saúde ou enfermeiros que passam o dia a falar ao telefone ou a conversar com os outros colegas ou que tratam mal os pacientes. Eles sabem que, no fim do mês, terão o salário nas suas contas. Não há metas, muito menos controlo. Quando um director da unidade sanitária vê muitas pessoas na fila o que é que faz? Muitos passam, pensam que a procura é que é maior. Nalguns casos sim, mas nem sempre”.

“Chapeiros” insensíveis

A falta deste tipo de serviço faz com que as pessoas tenham de alugar uma viatura para transportar um parente que esteja doente.

Por mais que consigam chegar à paragem, se os “chapas” aparecem, raramente aceitam levar um doente, que o diga José Nassone, de 72 anos de idade, que esteve mais de duas horas na paragem de Magoanine à espera de um “chapa” para chegar ao Centro de Saúde de Xipamanine, onde tinha uma consulta marcada para as oito.

“Cheguei às seis e ainda estou aqui (já passava das oito e trinta), não porque há falta de “chapas”. Eles não param porque sou idoso e estou num estado débil. Os transportes públicos (TPM) vêm cheios ou param a mais de 100 metros, e eu não estou em condições de chegar até lá. É muito triste, quando nos levam as pessoas não nos cedem assentos até que alguém mande”.

Direitos dos doentes

O Conselho de Ministros aprovou a 18 de Dezembro de 2007 a Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes. Deste instrumento constam cerca de 12 direitos consagrados aos pacientes, dentre os quais o direito ao respeito e dignidade humana, direito à vida e direito a um tratamento condigno.

Mas como a vida não e só feita de direitos, também existem deveres que têm de ser observados pelos doentes, sendo que alguns passam pelo fornecimento aos profissionais de saúde de todas as informações necessárias para obtenção de um correcto diagnóstico e adequado tratamento, colaborar com os profissionais de saúde, respeitando as indicações que lhe são recomendadas e por si livremente aceites, não oferecer valores monetários ou qualquer outro bem em troca dos serviços prestados.

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