Além de ter sido considerado o percursor do jornalismo de investigação em Moçambique, Carlos Cardoso também foi pioneiro na luta pela defesa da indústria do caju. O jornalista não concordava com as políticas das instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e do FMI) de liberalizar o comércio daquele produto no país. Na altura em que o país começou a dar os primeiros passos no relançamento da economia de mercado e em que se procurava definir uma estratégia de recuperação do sector de caju, os defensores da indústria de descasque viram-se numa situação desconfortável.
Na sua maioria, não viam com bons olhos a ideia de que, em lugar de se tentar continuar a exportar a amêndoa, o país devia exportar castanha em bruto – medida esta sugerida por iniciativa do Banco Mundial que pretendia tornar Moçambique eterno exportador dessa matéria-prima. Aliás, aquela instituição financeira entendia que a privatização da indústria, só por si, não era suficiente para assegurar a viabilidade económica do investimento.
O Banco Mundial justificou a sua posição através de um diagnóstico, apontando a ineficiência do sistema produtivo, responsável pelo valor acrescentado negativo, gerado pela actividade de descasque; o baixo preço a que era remunerado o produtor, comparado com o preço de exportação, explicava a queda da produção de castanha; as receitas resultantes da exportação da amêndoa – assim, a decisão de exportar amêndoa em vez de castanha de modo a evitar-se perda de divisas -; e o balanço da campanha de 1993-94 permitiu concluir que o mercado do caju foi dominado por um escasso número de comerciantes grossistas.
As reacções dos agentes envolvidos no sector da castanha de caju começaram a fazer-se sentir. As autoridades nacionais responsáveis pela implementação das políticas económicas, divididas entre as imposições das instituições de Bretton Woods e os interesses da sociedade, mantiveram-se indiferentes diante da situação. Os industriais e os sindicatos moçambicanos viram os meios de comunicação social privados como uma espécie de aliado, os quais vieram a ser determinantes na denúncia pública da cumplicidade entre o Banco Mundial, o Governo e aproveitamento de alguns comerciantes.
É nesse momento em que Carlos Cardoso se destaca como o primeiro jornalista a insurgir-se contra desindustrialização do sector. Iniciara a sua luta pela protecção da indústria do caju no jornal Mediafax, onde trabalhava como editor, e depois no Metical.
As críticas de Cardoso
Num momento em que a maior parte dos órgãos de informação ainda não tinha despertado para a importância da “guerra do caju”, Cardoso expunha a sua posição em relação às medidas do Banco Mundial, tendo seguido o assunto durante muitos anos, até a sua morte. Nos artigos de opinião publicados no Mediafax, o jornalista criticava aquela instituição acusando- a de estar a “desmantelar a indústria do caju”.
Cardoso acreditava que a economia do país só podia avançar através da industrialização e que as medidas propostas pelo Banco Mundial eram uma garantia de destruição da indústria. “Mas parece que Banco Mundial enveredou por uma prática de destruição do sector formal da nossa economia”, lê-se num dos seus artigos. Na época, o jornalista escreveu ainda que “o caju que representa mais de 25 porcento das nossas exportações, está entre a espada e a parede: se o Governo retira o BM do cenário, para parar a gravíssima desorganização do sector que o banco desencadeou, corre o risco de antagonizar os nossos credores ocidentais”.
Mas, dizia, também que “se nada for feito para os camponeses a liberalização imposta pelo BM, uma boa parte das indústrias não se aguentará e uma boa parte dos exportadores de castanha acabará por ficar reduzido a um papel de intermediário de capitais indianos”. Cardoso denunciava o facto de os grossistas nacionais, com capitais próprios, estarem a ser transformados “em meros agentes de grossistas da Índia”, além de descrever o drama dos comerciantes que começavam a perder autonomia no quadro mundial do comércio da castanha.
Quando os feitos desastrosos da liberalização do caju começaram a fazer-se sentir, o Secretário de Estado do Tesouro dos EUA em visita a Moçambique, afirmou que concorda com a industrialização do açúcar e com o financiamento do sector privado, mas que continuava a crer que a “industrialização do caju só pode ser feita à custa dos camponeses”.
Carlos Cardoso aproveitou o momento para realçar que o assunto sobre a crise do caju era periférico na visita do Secretário de Estado americano, tendo vindo à luz por pressão dos movimentos antiglobalização. “Moçambique não pode ser governado a partir de Washington”, dizia o único jornalista que tomou abertamente uma posição sobre o problema do caju.
Cardoso responsabilizou o Presidente da República, na altura Joaquim Chissano, e propôs, num dos seus artigos de opinião, três medidas, nomeadamente submeter uma lei à Assembleia da República, proibindo a exportação do caju em bruto; procurar novos parceiros (provavelmente a China) para financiar a indústria; cortar com o apoio do Banco Mundial e procurar ajuda na União Europeia, que começa a ser sensível ao problema de Moçambique. Com a finalidade de demonstrar que era possível recuperar a indústria de castanha de caju, o jornal Metical publicou um artigo com o título “Tanzânia decide reindustrializar o caju” sobre a revalorização da indústria do caju naquele país vizinho.
Cardoso, através do órgão de informação que dirigia, apoiou os sindicatos, dando cobertura à sua luta interna, assim como explorando as potencialidades das articulações existentes no seio do movimento sindicalista internacional. Na sua luta pela defesa da indústria, Cardoso publicou uma carta de 11 membros do Congresso dos EUA, dirigida ao Secretário do Tesouro, apelando para o fim da liberalização do comércio do caju em Moçambique, além de denunciar o trabalho infantil utilizado na indústria indiana do caju, sob a protecção do BM, FMI e do governo americano.
Soluções de Cardoso
Dentre os vários aspectos propostos pelo jornalista para o relançamento da indústria de caju destacam- se a ideia de os comerciantes, industriais e camponeses terem direitos iguais de acesso aos créditos e outras regalias e desenvolver estruturas para o restabelecimento da indústria de modo a fugir da dependência em relação ao dinheiro externo. Voltar-se aos princípios de não exportar castanha até que as fábricas estejam todas abastecidas; e leiloar as licenças de exportação de castanha bruta.
Além disso, Cardoso era a favor de a sobretaxa ser colectada pelo Banco Standard Totta de Moçambique, pois, segundo o jornalista, aquela instituição tinha capacidade de colecta e fiscalização nos três principais portos de exportação, e de se introduzir uma pequena sobretaxa na exportação de amêndoa (1 ou 2 porcento) que reverte a favor do fundo do caju tal como a sobretaxa aplicada à castanha.
Cumpriu-se o vaticínio?
Ao longo do século XX, numa época em que as plantações eram geridas pelos portugueses, Moçambique era o principal produtor mundial de castanha de caju.
Até à década de ‘60, o país produzia metade da castanha de caju a nível mundial com a produção atingindo o cume nas vésperas da independência com cifras de 200 mil toneladas por ano. Em 1972, a produção alcançou o seu ponto mais alto com a comercialização de 216 mil toneladas, sendo então Moçambique o maior exportador mundial.
Mas, os problemas no sector da castanha de caju começaram a agudizar-se logo após a independência em 1975, assistindo-se a uma redução drástica na produção e, consequentemente, na exportação. Os referidos níveis de produção não se mostraram sustentáveis devido às políticas estatais inconsistentes, à guerra civil, aos baixos preços ao produtor, às redes de comercialização debilitadas, à escassez de instrumentos, de bens de consumo e de alimentos, às secas, ao envelhecimento das árvores, às doenças e queimadas descontroladas. Quando a indústria vivia os seus melhores dias, cerca de 17 mil trabalhadores estavam empregues nas 14 grandes fábricas mecanizadas. As grandes plantações do país e a próspera indústria de processamento nacional davam a Moçambique uma grande reputação em todo o mundo.
O Governo, sob pressão do Banco Mundial, liberalizou o sector de caju, removendo a protecção da indústria e abrindo, assim, o sector ao comércio internacional de modo a elevar o preço da castanha ao produtor e criar incentivos para novos plantios e melhoramentos das árvores existentes. A indústria nacional ressentiu-se das medidas desajustadas do BM e passou a queixar-se dos preços exorbitantes ao produtor e de não conseguir competir com os seus mais directos concorrentes sobretudo a Índia, por sinal país que importa a maior parte da produção comercializada em Moçambique.
A maior parte das fábricas começou a encerrada, muitos trabalhadores foram despedidos. Hoje, os actuais níveis de produção são desanimadores, ou seja, a produção nacional não atinge as 100 mil toneladas por ano, quantidade necessária para viabilizar a indústria. Recuperar os elevados índices de produção é considerado uma utopia pelos intervenientes do sector de caju.