A relação entre os pequenos agricultores moçambicanos, comunidades rurais e os investidores estrangeiros tem sido caracterizada pelo surgimento de focos de conflitos de terras resultantes da falta de transparência na atribuição de espaço a estes últimos e a sua consequente usurpação. Sobre estas matérias o Governo, a vários níveis, já apareceu em público a recusar tal fenómeno, não obstante a continuidade das denúncias.
No encontro internacional dos camponeses, o produtor agrário, Calisto Paulo, do Núcleo de Nacala, em conversa com a @Verdade, explicou que no norte do país a usurpação de terras está a tomar contornos assustadores, pois os investidores estrangeiros que, a convite do Governo, entram em Moçambique prometendo emprego, melhoria das condições de vida e o alcance do desenvolvimento, nada mais fazem que ocupar várias extensões de terra dos nativos em processos pouco claros que muitas vezes têm a cobertura dos governos locais.
“Os empregos que nos dão só duram três meses, depois disso não precisam mais de nós porque já produzimos para eles, mandam-nos passear e não nos chamam na hora da colheita”, denunciou, em jeito de desabafo.
Por causa dessa situação calamitosa em que se encontram muitos camponeses, estes questionam se o Governo teria algum projecto que os pudesse realmente beneficiar. “A Revolução Verde declinou. Mandaram-nos produzir jatrofa, fizemo-lo, mas agora estamos sem mercado para colocar esse produto, agora temos o ProSavana que parece ser o maior de todos esses programas, mas tememos as suas consequências”.
Por sua vez, Ana Sitoe asseverou que na zona sul os problemas são similares. Em Homoíne, por exemplo, na província de Inhambene, as pessoas estão a ser retiradas das suas terras e não há nenhuma explicação clara do que está para acontecer. A confirmar o fenómeno, Rebeca Mabui, também camponesa, acrescenta que “os camponeses são os primeiros guardiões da terra, mas agora, com o apadrinhamento do Governo, essa terra está a ser-nos retirada por estrangeiros. Os turistas chegam ao ponto de nos impedir de ter acesso aos rios”.
Em Manica, nos distritos de Barué, Sussundenga e Tambara os camponeses estão a ser retirados das suas zonas de origem. Em Sofala há focos de conflitos de terra no distrito de Chamba, denunciou Domingos Buramo.
Muitos agricultores ergueram as suas vozes a reclamar quanto às sementes melhoradas fornecidas pelo Ministério de Agricultura (MINAG) considerando que estas não germinam e são de difícil conservação. Entretanto, o Executivo diz tratar-se de situações isoladas e defende que há casos de sucesso. “E para verificar isso, basta olhar para a produção do tomate”.
Os investidores só estão preocupados com o lucro
Para o académico moçambicano, João Mosca, os principais desafios dos camponeses são o combate à pobreza, o alcance da segurança alimentar e a melhoria da qualidade de vida. Entretanto, tudo depende de outros factores que não são disponibilizados aos camponeses, que são os meios para a execução da sua actividade agrícola.
A entrada desenfreada do capital estrangeiro na área de agricultura comercial poderá agravar essa situação. Esse capital poderá, segundo alerta o estudioso, diminuir ou aumentar a produtividade dos pequenos produtores.
Entretanto, de uma coisa Mosca não tem dúvida: esse mesmo capital só poderá beneficiar uma minoria do universo de camponeses, sendo que a maioria apenas irá sofrer as consequências negativas, facto que irá originar grandes transformações sociais no meio rural e, muito provavelmente, conflitos neste espaço.
O académico desaprova também a pretensão do Governo de transformar os camponeses em produtores comercias. O objectivo central do plano de desenvolvimento agrário prevê a transformação da agricultura de subsistência numa produção agrícola orientada para o mercado. Contudo, Mosca afirma não que é possível transformar 80 porcento de camponeses que praticam a agricultura de subsistência em produtores comerciais.
Na sua intervenção, João Mosca chamou a atenção para o facto de os investidores estrangeiros que muitas vezes entram no país prometendo desenvolvimento não estarem preocupados com a situação do camponês, mas sim com o lucro.
Desta feita, diz Mosca, o camponês não deve nem pode travar essa luta sozinho porque não é capaz de fazer face ao capital mineiro ou outros investimentos na zona rural se não estiver associado. “Vai haver muita confrontação no meio rural, com a entrada desse capital e o camponês tem de estar preparado em associações fortes para fazer frente a essa nova realidade que se avizinha”.
Outro aspecto que mereceu atenção por parte de Mosca está relacionado com a política de financiamento dos camponeses. Segundo indicações do director nacional da Economia Agrária, Raimndo Matule, o país possui vários mecanismos de financiamento, nomeadamente o Fundo de Desenvolvimento Distrital, vulgo sete milhões, Linha GAPI, instituições de microcrédito rurais, entre outros programas específicos de organizações da sociedade civil.
Porém, o pelouro da Agricultura tem também os seus mecanismos, através do Fundo de Desenvolvimento Agrário (FDA), nomeadamente os créditos Agrário, Pecuário e Florestal. Segundo o quadro do Ministério da Agricultura, de 2012 a esta parte já foram beneficiados camponeses em cerca de 407 milhões de meticais.
No entanto, para João Mosca, faz pouco sentido que o Governo esteja a gabar-se por considerar que há diversos meios de financiamento de camponeses pois menos de dois porcento destes é que recorrer a eles, para além de que o microcrédito, também içado pelo Governo como estando a trazer grandes benefícios, “pratica juros altíssimos, mais que os próprios bancos”, o que só retrai os potenciais beneficiários.
Para Mosca, o capital externo tem como aliados as elites no poder em Moçambique que se encontram no sector público.
Essa aliança é extensiva aos poderes locais, o que coloca o camponês em desvantagem em relação aos investidores no acesso à terra, que, curiosamente, lhes pertence. Mosca diz ainda que a forma como é feita a alocação dos sete milhões é uma clara demonstração de complô entre o poder rural e central, uma forma encontrada por este último de estender a sua influência àquele nível.
“A luta dos camponeses pela terra deve trazer um desenvolvimento economicamente equitativo, socialmente justo, culturalmente ajustado e sustentável na exploração dos recursos naturais, pois isso irá trazer a soberania alimentar”, defendeu o académico.
“O Governo deve definir áreas prioritárias de investigação agrária”, Adelino Rafael
O também académico Adelino Rafael, convidado a intervir acerca do papel das universidades no desenvolvimento agrário, explicou que, antes de mais, é importante que o Estado defina claramente as áreas prioritárias neste sector que poderão orientar as investigações. “O Estado não esclareceu as áreas prioritárias para a investigação no país e por isso são ainda poucas as academias de referência na área de desenvolvimento agrário em Moçambique”.
Outro constrangimento é relativo ao financiamento das pesquisas. Segundo explicou, grande parte do investimento destinado às pesquisas provém de empresas estrangeiras, o que faz com que as investigações sejam feitas em função do interesse destas entidades.
Não faz sentido que com quase quatro décadas de independência o país não tenha uma política de apoio à agricultora familiar tendo em conta que 80 porcento vivem desta actividade. “O Governo negligenciou a academia e não sabemos qual é a fonte de produção de políticas públicas”, afirmou, concluindo que há necessidade de haver uma orientação estratégica de prioridade de formação e investigação que possa orientar o Governo e a sociedade na definição das políticas públicas.