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Cambine: Nostálgico e sombrio

Cambine: Nostálgico e sombrio

A última vez que visitámos Cambine foi entre os finais da década de 60 e princípios de 70, numa altura em que havia muito entusiasmo na juventude da Igreja Metodista Unida de Moçambique. Aquele lugar, por onde passou e estudou Eduardo Mondlane, funcionava como um centro das atenções de toda a congregação. Nos finais de cada ano havia uma conferência que juntava jovens, adultos e crianças, e ninguém queria perder o momento. Mais do que irem glorificar a Deus, os jovens, em particular, queriam estar num espaço privilegiado em termos paisagísticos, localizado fora do bulício das cidades. Era isso o que mais os movia. Queriam festejar a vida com a própria natureza. E é essa beleza que pretendíamos rever no último fim-de-semana, porém, o que me “recebeu” foi a própria desolação e o prenúncio de um futuro sombrio.

Cambine fica a sensivelmente 35 km, saindo da Maxixe em direcção ao norte. Os primeiros 25 km são feitos numa estrada asfaltada, em boas condições, e os últimos 10 km, depois do cruzamento de Jogó, um pouco antes do vilarejo de Murrombene, estendem-se em terra batida não confortável. Passam mais de 40 anos, mas as memórias estão guardadas como se tudo tivesse acontecido ontem. Há muito que tínhamos este roteiro na agenda e sempre acreditámos que o momento chegaria, como há dias, quando fomos transportados numa carrinha de caixa aberta, sentados no banco da frente, ao lado de um condutor jovem que não será propriamente responsável.

Aliás, notava-se isso facilmente na forma como ele fazia as curvas e na maneira como desrespeitava as lombas, com a agravante de que na carroçaria transportava pessoas, dentre as quais jovens estudantes que ainda se encontram na fase inicial do seu projecto de vida. Entregues às mãos de um jovem imprevisível viajámos rezando. Quatro ou cinco quilómetros após a partida, avultavam do lado direito as ruínas de um latifundiário que leva – ou levava – o nome de um cidadão identificado por Rocha.

Era ali onde estava instalado o seu “estado-maior” para controlar as imensas plantações de cajueiros que lhe davam renda favorável todos os anos. E, também, havia no mesmo espaço uma loja construída para explorar os residentes da zona, que não tinham outra alternativa senão fazerem as suas compras ali mesmo. Os cajueiros – outrora cuidados e organizados – agora são imperceptíveis no meio da pequena mata onde desponta, diferentemente da época passada, uma casa aqui e acolá. E esse foi o primeiro choque que apanhámos numa viagem planeada para rever lugares e momentos.

Foi um detalhe para registarmos no bloco de notas enquanto esperávamos, provavelmente, da próxima decepção. Dentro da cabine de um “Isuzu” de caixa aberta ouvia-se a música dos Soul Brothers, em tom suave, que o condutor não escuta porque está constatemente a falar ao telefone. Nós, também, não podíamos concentrar-nos na melodia, porque tínhamos de ouvir, ao mesmo tempo, as conversas sem nexo do jovem que nos leva a Cambine, mais de 40 anos depois de lá termos estado. O céu estava limpo e o sol abria com todo o seu esplendor sobre a terra.

Cruzámo-nos com outras carrinhas transportando – como a que viajávamos nela – várias pessoas que incluíam estudantes das escolas primária e secundária. Havia vida na estrada de terra batida. Ainda podíamos ver, pendurada numa árvore, a carcaça de um suino morto para um pitéu a ser servido ali mesmo, entre goladas de uma bebida qualquer. Quando faltavam cerca de cinco quilómetros para chegarmos a Cambine, ou seja, quando atravessávamos o riacho de Galango, onde nesses tempos ninguém passava, lembrámos de que ali havia bandidos perigosos, sempre prontos a encurtar a vida das pessoas, ou com catana ou à facada. Era um lugar temido. Ninguém ousava transitar sozinho. Contudo, hoje, a paz voltou a Galando, onde homens e mulheres fazem a sua vida normalmente.

História e arquitetura

 

Chegados a Cambine, sem muita coisa para ver pelo caminho, depois de Galando, fomos recebidos pelos históricos edifícios da Igreja Metodista Unida de Moçambique, arrumados, aparentemente, deforma aleatória. Mas é aí onde está exactamente a beleza! Não é a mesma coisa. O capim tomou conta de Cambine. As ruas já não se reconhecem. E aquelas casas, de edificação arquitetónica, tornaram-se monstruosas. O antigo edifício de culto, que será para sempre uma verdadeira obra de arte, foi abandonado. O tecto está a ceder, os bancos usados para sentar e ouvir a palavra de Deus estão em estado contínuo de degradação. Lá dentro cheira a bafio. E, à volta, o capim cresce livremente, dando um ar triste e sombrio ao local.

Cambine já foi referência por possuir uma pequena barragem hidroeléctrica, que produzia energia algumas horas durante a noite. Era um ponto de atracção. Todos nós, quando visitássemos a zona, queríamos ver a fonte que gerava energia eléctrica e iluminava as ruas e as casas. Era irresistível visitar aquele empreendimento que era chamado “Maguezini”. Hoje, já não há nada disso. O local foi absolutamente abandonado em benefício da energia da Hidroeléctrica de Cahora Bassa. Ninguém quer saber. Mas fomos rever a barragem e os escombros dos edifícios que resguradavam as máquinas.

A albufeira foi coberta por plantas aquáticas e só sobrou uma pequena lagoa onde os miúdos se deleitam com mergulhos. Quem vai a “Maguezini”, actualmente, certamente que não quererá voltar amanhã porque já não há nada lá. O que entristece mais é todo aquele manancial de casas da missão que parecem não ter futuro. Entristece porque Cambine faz parte da história de Moçambique, com todos os seus mitos, como o americano Keys, tido como um dos principais arquitectos daquela aldeia religiosa. E que, depois de morrer, foi enterrado ali mesmo, passando, a sua alma, a aterrorizar a zona.

Nunca se vai provar que isso seja verdade. Mas conta-se que a alma daquele americano atormentou Cambine durante muitos anos. Depois de se apagarem as luzes – o que acontecia pouco depois das 21h:00 horas, Keys levantava-se da tumba. Vagueava por Cambine aterrorizando tudo e todos, incluindo Chibamulane, um guarda destacado para manter a segurança. Diz-se mesmo que chegava a recolher todos os carros da missão para o cemitério, e que no dia seguinte era necessário que de lá fossem recuperados. É uma história de que os mais velhos se vão recordar, sem dúvida, porque aquele lugar também viveu de mitos

Que hoje se vão diluindo. Vagueámos durante um tempo por aquele espaço e subimos até a zona onde viviam os reverendos Matchekane e Mudjongo. Ali ainda se pode notar uma “mão” preocupada em dar vida ao sítio, mas o resto parece estar abandonado. As casas onde viviam os subdiáconos são irreconhecíveis, indem em aspas o “palacete” do célebre tesoureiro Mudjongo, que será conhecido e reconhecido pela sua capacidade de manter estáveis as finanças da Igreja.

Mas esta necessidade de restauração ultrapassa a Igreja Metodista Unida de Moçambique, porque toda aquela magestade arquitetónica, agora em derrocada, é, também, um património histórico-cultural de Moçambique. O bispo reformado João Somane Machado, que pode estar a escrever um livro sobre a Igreja e as suas vivências na missão de alimentar o rebanho de Deus, conhece muito bem este lugar. Ele faz parte de todo o sangue que corre por aqui. E o facto de estar em Inharrime em repouso merecido não o vai impedir de sentir estas lembranças trazidas para compartilhar com os leitores.

Conferências interrompidas

Será que já ninguém se recorda desses momentos? Por acaso os que viveram essa alegria não têm a ambição de que isso volte a acontecer? Não acham que é possível corrigir o caminho da degradação que Cambine está a levar? São perguntas à espera de uma resposta que parece óbvia, porque todas estas inquietações podem ser respondidas positivamente. O facto de estar a funcionar ali uma escola secundária tutelada pelo Estado não obsta a que se realize um sonho. Todas as coisas belas podem ser feitas em comunhão no mesmo espaço. É possível promover-se uma conferência nacional, que abriria espaço a outras instituições interessadas, e a partir daí reerguer- se aquele “mito”.

O mais importante é salvar aqueles edifícios que são património de Moçambique e devolver as patentes a um lugar que foi o eixo principal da Igreja Metodista Unida de Moçambique. Seria ainda uma forma de valorizar os fundadores da missão de Cambine, porque não há a menor dúvida de que isto é uma dádiva de Deus, e não faz sentido que se abandone toda aquela aura. Se nos disserem que não há dinheiro para tanto, nós responderemos: há dinheiro para tudo. O importante é pôr a vontade à frente das coisas. Vontade e fé. Depois tudo o resto vai acontecer.

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2 Responses

  1. Bela história!

    O meu avó José sarmento Mudjongo Zunguze me levou a Cambine em 1994 para ver o local e as campas da familia mudjongo, de certeza que uma delas era do reverendo mudjongo.

    Cpts

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