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Bitonga Blues – Uma criança amarrada a uma árvore com corrente de aço, como um cão raivoso

Se não fosse este episódio macabro, provavelmente estaria a dormir, de costas, como um cadáver, na cela onde o meu demónio me havia metido, à espera que fosse ele a vir remover os ferrolhos, para me devolver à liberdade. Estaria agora a coçar a superfície das micoses que começavam a sair em toda a minha pele, desde o dia em que os aclamadores da modorra anunciavam a minha derrocada. Mas eu estou do outro lado, onde a luz se reacende, sempre que se apaga. E rebentei as grades quando, no último domingo, passeando pelo bairro Khongolote, nos arredores da cidade de Maputo, vi uma criança amarrada a uma árvore.

Olhei para ela com compenetração para me certificar se aquilo que via era verdade ou seria uma alucinação. E o que estava à minha vista, era a pura verdade. Cruel verdade em si mesma: a pequena criatura tinha os dois pés atados a uma corrente de aço, deixando livres os braços, que esgravatavam o chão como o fazem os lagartos. Os movimentos do miúdo eram de absoluto desespero.

Cada vez que se tentava libertar, movendo as perninhas esquálidas, aumentava a dimensão das feridas provocadas pelo estúpido metal. Latia como um cão ferido nas matas, por outros cães mais venenosos e ainda mais imundos e ainda mais asquerosos. De vez em quando dobrava-se como uma cobra e, no lugar de passar as mãos por de cima das chagas, lambia-as.

O sangue fedorento untava os lábios, tornando o rosto da criatura ainda mais abominável. Desisti temporariamente de prosseguir a minha viagem aleatória, para continuar a assistir a um espectáculo que vinha de um lugar abissal, onde o próprio demónio mora. Estava em presença de um miúdo que sofria e era castigado, ou melhor, o crime casava com o castigo.

A criança estava amarrada num lugar onde todos que passassem por ali a podiam ver. Compartilhando com ela toda aquela dor, todo aquele sofrimento e todo aquele castigo. Mas o pior de tudo isso é que, mesmo junto à árvore maligna – que se ergue em frente a uma casa de alvenaria modesta – está sentada uma mulher com as pernas estendidas para a frente, refastelando-se com iguarias que não consegui identificar. Era ela e mais duas crianças, que também comiam, ao som dos gemidos do miúdo que está amarrado.

Os gritos da criança agora aglutinaram outras tonalidades: há uma mistura de lamento e dor e apelo. E ninguém lhe liga, até agora em que a mulher, ainda com as pernas estendidas para a frente, serve num prato de alumínio e entrega a uma das crianças para dar ao desafortunado. Este recebe profusamente o recipiente e, num descuido, despeja a comida toda para o chão. Sentiu-se um gemido indescritível.

A mulher mandou a criança ficar em silêncio, ao mesmo tempo que vociferava: “cala-te, não nos ensurdeças. Pensas que sou tua mãe!? Não sabes que a tua mãe morreu? Vai dizer a ela para te vir servir. Eu tenho os meus filhos, não estou para aturar fezes das outras mulheres. Macaco!” O miúdo apanhou a comida despejada involuntariamente no chão e comeu como um cão selvagem, sempre a latir de forma estranha, como um verdadeiro mabeco.

Comia e, de vez em quando, dobrava-se como uma cobra e lambia as suas feridas, frescas nos tornozelos, renovadas pela corrente que manietava uma criatura de Deus, agora comandada pela força do diabo. Quando me ia embora, olhei para trás e encontrei-me, olhos nos olhos, com a criança, que mastigava como uma cobra. Olhava-me como um cão rendido, como quem me irá dizer: “Irmão, tira-me daqui!”

Fui participar o caso à Polícia.

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