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Bitonga Blues – Por causa da tua voz rústica, Zé Mucavele

Bitonga Blues - Por causa da tua voz rústica

Eu sempre quis dizer-te isso, num lugar em que estivéssemos só nós os dois, sem que ninguém nos ouvisse, de perferência debaixo de uma árvore onde nos pudéssemos deliciar com o crepúsculo do entardecer e com um rio à nossa frente para atravessar. Mas esse dia nunca mais chegou e eu, como não tenho muita paciência – como a morte por vezes tem – resolvi escrever-te esta carta e publicá-la para toda a gente saber.

Zé, tu sempre pensaste – como é apanágio dos génios – que o mundo tem que te obedecer. És um homem de peito aberto, com uma grande incapacidade para ouvir os outros e, quando entras por um caminho, ninguém te vai demover. Já quebraste várias lanças e lançaste-as no espaço e, do outro lado – como aconteceu depois da lança dos “Secos e Molhados” – ouviu-se um grito.

 

És um génio. Deus transformou-te num dos maiores compositores do mundo. No país onde nasceste e vives, todos te respeitam, mesmo aqueles que não te entendem e não entendem aquilo que fazes, mas o teu pecado é esse mesmo: não queres ouvir os outros. Eu sou teu fã incondicional. Se chegasses agora perto de mim e me dissesses: “Alexandre, vamos juntos para o inferno”, eu ia contigo. Se chegasses agora perto de mim e me dissesses: “Alexandre, ajuda-me a levar estas fl ores para oferecer a Deus”, eu deixava tudo o que tivesse amealhado e ia contigo.

Já viste, Zé, como “gramo” de ti! O Marcelo Panguana perguntou-me uma vez – enquanto cantávamos a tua “Wussunguthini ni minthi”, no meio dos copos e de alegria e de sonhos. “Porque é que não vais ocupar o lugar que te espera na lista dos gigantes da África? Eu também fi z ao Marcelo Panguana a mesma pergunta. Ele ainda perguntou-me: “O que é que o Zé deve a monstros como Salif Keita, Yossou Ndour, Manu Dibangu, Fela Kuti, Hugh Massekela e outros astros que cintilam pelo mundo?, E eu respondi que tu não devias nada a eles.

É isso, Zé, o teu problema é não quereres ouvir os outros. Tu não podes continuar amarrado ao teu umbigo, precisas de abrir essas asas de ouro que tens e planar no universo daqueles que te querem o bem, incluindo Rui Veloso que já veio a Maputo só para te ver. Tu és um gajo do caraças. As músicas que vêm no “Compassos I” – que oiço atenta e repetidamente – denunciam um músico feito de cristais divinos.

Sente-se naquele disco uma plataforma de onde se pode partir, por exemplo, para o jazz e para o blues, eivando os espaços com sons que o mundo não conhece e esses sons quem os faz és tu, Zé, só podes ser tu a fazê-los. Sei que tens o “Compassao II” concluído, mas ainda não editado. Nele percebe-se nitidamente a tua recusa em voltar ao trote, muito menos ao passo. Aliás, desde que começaste a galopar, o teu galope é intensifi cado em cada distância que te propões percorrer.

Pois é, Zé. Eu acho que deves voltar a falar com aqueles que têm a capacidade para te ouvir, sobretudo aqueles que têm estrutura para perceber a tua maneira “chata” de ser. Por vezes és um gajo intragável, mas és bom. Devias voltar a falar com eles. Mostrar-lhes um plano de formação de uma banda constituída por gajos bons, capazes de acompanhar um sáurio como tu. Não podes continuar a aparecer sozinho por aí, como se a tua música começasse e terminasse apenas na tua guitarra.

Não! Eles têm que perceber que a tua música é de elevada resolução. Moçambique precisa de ti, apesar de seres, por vezes, intragável. Mas eu estou-me marimbando para a tua maneira de ser. Gramo maningue de ti e gostaria, Zé, de ter ver um dia acompanhado por um agrupamento poderoso, com o qual percorrerias o mundo todo com a bandeira de Moçambique.

É isso, Zé, eu já queria dizer-te tudo isto há muito tempo. Trazia comigo estas palavras à espera de um crepúsculo da tarde e uma árvore para nos acolher e um rio para atravessar. Esperei muito e, como não tenho a paciência que por vezes a morte tem, eis que hoje escrevo esta carta para ti. Também foi por causa da tua voz maravilhosamente rústica que decidi escrever-te. Cantas entre a melancolia de uma rola e a dor de um escravo que puxa a charrua com as correntes enroladas ao pescoço, como se fosses um boi que passará toda a vida com ferros no corpo.

Abraço, Zé!

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