Os habitantes da segunda maior cidade Líbia organizam-se em comités para gerir a justiça, a educação, a saúde e o trânsito nas ruas. É uma cidade paralisada, que, no entanto, denota uma actividade febril. O comércio fechou as portas aos 650 mil habitantes de Bengazi; os transportes públicos desapareceram; os organismos públicos estão encerrados – muitos foram incendiados e destruídos.
Mas o Tribunal do distrito Norte, no coração da capital da revolta líbia – onde, no dia 15 de Fevereiro, começaram as manifestações anti-Kadhafi –, assiste a um fervilhar incessante. É nesse edifício que se organizam os comités que gerem os assuntos quotidianos da cidade: saúde, educação, segurança, trânsito…
O regime de Kadhafi nunca investiu nesta região, sempre vista como o berço da oposição ao ditador. Mas, agora, já não está claro quem, na realidade, é rebelde, se Kadhafi ou os insurrectos. Porque os mais destacados cabecilhas da revolta popular dedicam-se, hoje, de corpo e alma a esses comités que assumem uma dimensão descomunal.
Sem dinheiro, com escassez de medicamentos e comida, mas cheios de entusiasmo, são milhares os voluntários dispostos a entregar-se à causa. Um certo nível de caos até pode ser agradável, quando se viveram quatro décadas de opressão. Irradiam felicidade, apesar das incertezas. ‹‹Todos são voluntários », assegura Ibrahim Benomran, ex-director de um canal de televisão.
«Necessitamos de mais jornais, de mais emissoras de rádio», afirma ele, antes de nos entregar o terceiro número do jornal Libeniadeda Líbia. Outro diário, Libia, levalhe vantagem: o seu primeiro exemplar, muito modesto, viu a luz a 24 de Fevereiro. O lugar onde trabalham já foi baptizado: Centro de Imprensa dos Rebeldes.
Também opositor, o professor de gestão Abderraman El Derraji, atribui aos voluntários tarefas policiais nos subúrbios da cidade e dirige a distribuição de alimentos: ‹‹O principal problema que temos é a falta de comida. E precisamos de medicamentos, ambulâncias e médicos ››. Frente ao Tribunal, na marginal, junto do Mediterrâneo, meia dúzia de médicos egípcios distribuem antibióticos. «Kadhafi tem de seguir os passos do tunisino Ben Ali e do egípcio Mubarak», adverte um jovem clínico do Cairo.
A El Derraji preocupa mais um assunto capaz de gerar problemas no futuro: as armas nas mãos de civis, nomeadamente de crianças. Obtiveram-nas quando as autoridades abriram os paióis ou estes foram assaltados. «Muita gente guardou armas e temos de as recolher.
Já instalámos postos de recolha nas mesquitas››, conta o professor, que lamenta, igualmente, o péssimo funcionamento das comunicações. «Por norma, é muito difícil falar por telefone ou enviar mensagens e temos de fazer reuniões. Perde-se demasiado tempo.»
O que não podem perder é o dinheiro que não têm. Numa das janelas do edifício do Tribunal, aparece uma mão que recolhe uma nota após outra. Entregam- nas crianças e adultos, após escutarem um homem que grita através de um megafone.
Só servem para tapar buracos. Porque para suprir as notórias carências, ainda será necessário esperar muito. Embora já tenham posto mãos à obra.
Abdalah Ali, professor de Química, dirige o comité de Educação, área em que é necessário começar tudo desde o início. ‹‹Vinte e cinco porcento dos jovens», explica, «só sabem ler e escrever; muitos nem isso. Kadhafi empenhou-se, durante 42 anos, em converter-nos em ignorantes.
Metade da licenciatura de um engenheiro consistia no estudo do Livro Verde do tirano, a obra do seu projecto revolucionário. Mas a educação é muito mais importante que o petróleo» E também a possibilidade de aceder a cargos-chave porque, como sublinha Mustafa Gheriani, responsável pela reorganização judicial, «talentos não faltam, mas nunca chegavam ao topo. Só quem fosse “doutorado” no Livro Verde».