Detido há dias em Londres, o líder do sítio WikiLeaks promete continuar a revelar segredos. Herói da verdade ou amigo de terroristas, quem é, afinal, Julian Assange?
Foi a contragosto que Julian Assange trocou o habitual “paradeiro desconhecido” por uma prisão britânica. O editor-chefe do sítio WikiLeaks – que pôs o mundo em polvorosa ao revelar documentos secretos das embaixadas americanas – entregou- se à polícia de Londres na terça-feira da semana passada. Era procurado por abuso sexual e violação.
O caso recorda o de Al Capone, preso há 80 anos por não ter pago os impostos, quando a fama lhe vinha de outras proezas. A justiça sueca acusa Assange de quatro crimes contra duas mulheres, voluntárias da Wiki- Leaks naquele país, cometidos entre 14 e 18 de Agosto. Terá feito sexo com uma enquanto ela dormia, sem preservativo; a outra diz que Assange tãopouco usou protecção consigo, apesar de lho ter exigido, e não respeitou o seu desejo de interromper o acto.
As alegações são suficientemente graves, segundo o juiz Howard Riddle, para impedir a libertação sob fiança. A “escassa ligação”ao Reino Unido e o facto de ter “meios de habilidade para se esconder” pesaram mais do que os 23.700 euros (cerca de 1 milhão cento e oitenta e cinco mil meticais) por cabeça que seis pessoas (incluindo o realizador Ken Loach e a socialite Jemima Khan) estavam dispostas a deixar em caução.
Assange desmentiu as acusações e rejeitou a extradição voluntária para a Suécia, onde não crê que possa ter julgamento justo. Também alega não ter recebido a informação obrigatória sobre as acusações que lhe são movidas. A contenda pode durar meses.
O australiano de 39 anos que anda nas bocas do mundo é a figura de proa do WikiLeaks, lançado em 2006 para divulgar documentos secretos. Depois dos diários das guerras do Afeganistão e do Iraque, que deram conta de violações de direitos humanos, a organização começou, no passado dia 28 de Novembro, a colocar na internet 250 mil telegramas de embaixadas americanas. Verdade e transparência, elogiam alguns. Bisbilhotice e terrorismo, criticam outros.
No próprio dia em que foi detido, Assange escreveu um artigo no diário “The Australian”. Nele garante não ser contra a guerra e reconhece a necessidade de os países pegarem em armas em certas circunstâncias, mas avisa que “nada é mais errado do que um governo mentir ao seu povo acerca dessas guerras, e depois pedir aos mesmos cidadãos para dar as suas vidas e os seus impostos em nome dessas mentiras.”
Defendendo que só a transparência pode eliminar as injustiças, reitera a filosofia do WikiLeaks e o direito à informação. O título é “Não matem o mensageiro por revelar verdades incómodas.” Matar este mensageiro é, porém, o que vários políticos americanos desejariam. “Tudo o que ficar abaixo da execução é uma pena demasiado branda!”, bramou o republicano Mick Huckabee, apoiante do movimento Tea Party, a propósito do escândalo dos telegramas diplomáticos, que considera alta traição.
O radialista Gordon Liddy, que foi assessor do Presidente Richard Nixon, e o editorialista Jeffrey T. Khhner, do diário “The Washington Times”, defenderam a inclusão de Assange na lista dos alvos terroristas a assassinar sem julgamento. O secretário da Defesa, Robert Gates, não vai tão longe. “Parecem- me boas notícias”, disse ao saber da detenção de Assange. Os republicanos Mitch Mc- Connell, Newt Gingrich e Peter King (que presidirá, a partir de Janeiro, ao comité de segurança interna da Câmara de Representantes) chamam-lhe “terrorista”.
Se não é um deles, pelo menos ajuda-os, acusaram os Governos britânico e americano quando a WikiLeaks publicou, na véspera da detenção de Assange, um telegrama com uma lista de locais “vitais” para a segurança dos Estados Unidos. Horas após a detenção, muito a propósito, Washington anunciou que organizará o Dia da Liberdade de Imprensa da UNESCO, dedicado aos novos media.
Coincidência suspeita
Dado que tudo o que rodeia Assange tem peso político, os seus advogados desconfiam da proximidade temporal entre as acusações de cariz sexual e a divulgação dos telegramas. Recordam que a primeira procuradora sueca a analisar o caso considerou “Não haver razões para suspeita” e que a magistrada que reabriu o processo e autorizou a emissão do mandado de captura internacional rejeitara a disponibilidade manifestada por Assange para ser ouvido na embaixada da Suécia em Londres ou na Scotland Yard. Difamação e vingança, dizem.
Do lado de lá do Atlântico, a violação de que se fala é outra: da Lei de Espionagem de 1917. O procurador-geral Erik Holder diz ter ordenado “várias acções” contra Assange, a quem chamou “arrogante, mal orientado e nada benéfico”. Quer, acima de tudo, travar a avalanche de telegramas que o WikiLeaks tem divulgado a conta-gotas. Não parece fácil.
O sítio resistiu, nos últimos dias, a ciberataques que o obrigaram a mudar de servidor (aloja-se, agora, na Suíça) e, antevendo a prisão de Assange, resguardou-se contra o pior dos cenários: os documentos diplomáticos ainda por divulgar foram condensados num ficheiro, protegidos por uma senha de 256 caracteres, que será publicado caso o Wiki- Leaks venha a ser encerrado ou impossibilitado de estar online.
A hipótese é plausível. Várias fontes de financiamento do sítio – contas para receber donativos via Internet – têm sido bloqueadas. Há dias, o banco suíço PostFinance fechou uma, no valor de 61 mil dólares (cerca de dois milhões cento e trinta e cinco meticais), por “dados incorrectos”. Também o sistema de pagamentos Paypal, onde Assange tinha 28 mil euros (1 milhão e quatrocentos mil meticais) cancelou o seu acesso. Seguiram-se a Visa e a MasterCard, que aceitam, porém, donativos para o Ku Klux Klan.
A reacção dos amigos do WikiLeaks não tardou: o grupo Anonymous atacou as redes informáticas do PostFinance e do Paypal. “Os sítios que se vergam à pressão dos governos tornamse alvos”, explicou à BBC um membro do Anonymous, de alcunha Coldblood. Adianta que criaram 507 sítios-espelho do WikiLeaks, para garantir que fique no ar mesmo que o actual endereço seja atacado.
Uma porta-voz do WikiLeaks, Kristinn Hrafnsson, garantiu que a detenção de Assange não prejudicará a actividade do sítio.
Uma dúzia (ou três) de escolas
Certas características de Julian Assange vêm de muito antes do WikiLeaks: paradeiro incerto, queda para computadores, vida familiar complexa (tardou oito anos em acordar com a ex-namorada a custódia do filho Daniel), vontade de desvendar segredos e disponibilidade para abdicar de confortos estão-lhe na pele desde que nasceu em 1971, em Townsville, no estado australiano de Queensland.
O pequeno Julian estava sempre a mudar de casa e de escola, primeiro porque os pais tinham uma companhia de teatro ambulante, depois porque se separaram e o segundo casamento da mãe acabou em disputa entre esta e o novo marido, a propósito da guarda de um filho entretanto vindo ao mundo. Julian, a mãe e o meio-irmão estiveram escondidos durante cinco anos. Ele frequentou 12 escolas (ou 37, dependendo da fonte) e seis universidades, além dos períodos em que estudou em casa.
Autónomo desde os 17 anos, terá chegado a dormir nas ruas de Melbourne, escreve o “The Daily Telegraph”. Vinte anos volvidos, não tem sido muito diferente a vida de Assange, que já viveu no Quénia, Tanzânia, Islândia e Reino Unido e não pensa voltar à Austrália, onde é investigado por causa do WikiLeaks.
Esquivo, vai mudando de hotel, telefone e até cor de cabelo. Segundo o “The New York Times”, “dorme em sofás e no chão e usa dinheiro vivo, muitas vezes emprestado por amigos.” Uma amiga de Assange revelou ao “Sydney Morning Herald”, sob anonimato, a nula importância que aquele dá ao conforto físico: numa casa que partilharam, “cheia de geeks informáticos”, havia camas na cozinha. Assange ficava colado ao PC durante horas, ou escrevia fórmulas matemáticas nas paredes e portas, “frenético” esquecendo-se de dormir. Lamentava que o corpo exigisse várias refeições diárias. Desconcentravam-no. A fonte compara-o a um personagem da trilogia Milénio, do sueco Stieg Larsson.
Talvez se deva a esta vida manifestamente desconfortável o facto de Assange ser muito criticado, mas nunca por procurar ou obter benefícios pessoais.
Pirata ético
Física, Matemática, Filosofia e Neurociências figuram no currículo académico do homem que já na adolescência – depois de a mãe lhe oferecer um computador Commodore 64 – se revelara um hacker exímio, indo buscar ao poeta romano Horácio o pseudónimo Mendax (da expressão splendide mendax, mentira nobre).
Por esta altura fundou o grupo International Subversives, que metia a foice em computador alheio, mas com regras: era proibido danificar os sistemas penetrados ou adulterar a informação neles contida, a não ser para proteger a identidade do invasor, e os dados roubados eram para partilhar.
As vítimas, escreve o “The Daily Telegraph”, eram “ricos e poderosos”. Antes de fundar o WikiLeaks, Assange denunciou físicos que vendiam dados científicos ao exército e serviços secretos. Tanta deontologia não o livrou de uma busca policial à sua casa, em 1991. Confessou 24 actos de pirataria e pagou uma multa. O tribunal acreditou que não houvera más intenções.
Coautor de um livro sobre hacking, Assange admitiu à revista “Forbes” que, embora não negasse o orgulho em tais proezas, achava “muito aborrecido” que o associassem apenas àquela actividade. Ainda frequenta conferências de hackers, mas dizse jornalista (há quem discuta com que legitimidade, incluindo o Governo americano). No final do século XX, dedicou-se a criar software de acesso livre, incluindo o sistema de encriptação de dados Rubberhose, que pretende ajudar “activistas dos direitos humanos que precisem de proteger dados sensíveis no terreno”.
A veia ética e humanista parece reflectir-se nas denúncias do WikiLeaks, feito apenas por voluntários. Matanças extrajudiciais no Quénia, as condições da prisão de Guantánamo, depósitos de lixo tóxico em África e os rígidos manuais da igreja cientologista estiveram na mira do sítio, assim como as violações dos direitos humanos nas guerras do Médio Oriente, bem patentes num vídeo captado em 2007 e revelado em Abril, no qual um helicóptero americano mata civis no Iraque.
Divulgar os segredos que os poderosos querem fechar a sete chaves, pondo a nu delitos de governos e empresas, valeu a Assange o prémio Sam Adams (atribuído por ex-oficiais da CIA em 2010), o galardão de media da Amnistia Internacional britânica (2009) e o prémio de liberdade de expressão do Index on Censorship (2008). Assange diz que age como age pois só assim poderá “mudar radicalmente o comportamento dos regimes” que, “não querem ser mudados”. Prometendo contribuir para a “paranóia” de toda e qualquer organização injusta, Assange assegurou ao “Sydney Morning Herald” que o seu sítio já publicou mais documentos secretos do que todos os órgãos de comunicação de mundo juntos. Longe de se gabar disso, afirma que a apatia dos restantes media é uma “desgraça” para o jornalismo e declara-se “extremamente cínico”. Sem a restante comunicação social, contudo, a sua acção não seria tão notória.
Cinismo relativo a Assange é o que expressa o ex-agente secreto britânico Daniel Yates, que o ataca por “colocar em risco civis afegãos”. Ao publicar dados pessoais de informadores da NATO, afirma, encoraja vinganças por parte dos talibãs. Isto apesar de o WikiLeaks reiterar que omite informações que ponham vidas em perigo. “Tem as mãos sujas de sangue de jovens soldados e famílias afegãs”, sentenciou Mike Mullen, chefe do Estado-maior americano. “É fantástico, vindo de quem ordena assassínios todos os dias!”, retorquiu o fundador do WikiLeaks.
O analista militar Daniel Ellsberg, famoso por ter revelado os “Papéis do Pentágono” sobre a guerra do Vietname, em 1971, afirma que Assange “serve a democracia” e elogia a sua competência na obtenção de informações. O que se segue na vida deste homem que doseia as aparições públicas, mas não as palavras que profere?
Assange disse à TV pública da Suíça que queria pedir asilo político àquele país, um dos poucos onde julga viável manter o WikiLeaks. Tal nunca sucederá até o processo de extradição terminar. Em todo o caso, o Conselho de Refugiados helvético avisa que o pedido só seria aceite se, antes disso, Assange solicitasse protecção à sua Austrália natal e esta lha recusasse. O activista nada pedirá a Camberra, cuja justiça o procura.
A mãe confidenciou à imprensa daquele país que talvez o filho se tenha tornado “demasiado esperto para si mesmo”. Mesmo atrás das grades, Assange continuará a fazer o que faz melhor: divulgar dados secretos na Internet. Um dos próximos alvos será um grande banco americano, anunciou na entrevista à “Forbes”.
A “Time”, que falou com ele recentemente – e a quem afirmou que a líder da diplomacia de Washington, Hillary Clinton, devia demitirse “caso se prove que mandou expiar as Nações Unidas, violando convénios internacionais” –, incluiu-o nos candidatos a Personalidade do Ano, distinção atribuída a quem teve maior influência mediática nos últimos 365 dias. Uma sondagem na edição digital da revista dá-o como o preferido dos leitores. Mas nem a eventual vitória servirá para dirimir a discussão sobre a natureza desta personagem: entre os anteriores vencedores, tanto encontramos Gandhi, Einstein e Churchill como Hitler, Estaline ou Khomeini.