Enquanto o norte do continente africano vive uma verdadeira epidemia de movimentos em prol da democracia, um tipo diferente de revolução ganha força na terceira nação menos desenvolvida do mundo, Burkina Faso, pequeno país desprovido de litoral encravado no oeste da África, exactamente abaixo do deserto do Saara, cenário de um movimento que tenta reverter um quadro trágico.
Ali, milhares de mulheres unem forças para conquistar a sua dignidade e escapar da miséria, do analfabetismo e da violência secular de uma sociedade machista e ainda tribal por meio do cooperativismo.Na cidade de Léo, localizada a 140 km da capital Ouagadougou, quatro mil mulheres trabalham na colheita e no processamento do karitê. Depois de transformado em manteiga, o fruto típico de África é utilizado na fabricação de cosméticos de algumas das maiores marcas do planeta.
O trabalho, realizado ao longo de quatro meses por ano, garante USS 140 a cada cooperativista. Parece pouco, mas é mais do que a renda média do país. Segundo o Banco Mundial, os mais de 16 milhões de burquinabes vivem com menos de um dólar por dia.
“Consegui mandar os meus filhos para a escola com o que ganhei com o karitê”, diz Pignan Bassia Mariam. Aos 58 anos, casada há quase quatro décadas com um professor, ela narra uma história que serve de exemplo para as suas companheiras. Uma excepção à regra num país onde apenas 26,5% da população sabem ler e escrever, Mariam é o motor de uma grande família.
Além de criar os seus oito fi lhos, ela ainda cuidou de dois sobrinhos depois da morte de sua irmã. “Comecei a trabalhar com o karitê nos anos ´70. Antes, apenas colhíamos as frutas e vendíamo- -las no mercado. Agora, com a manteiga, temos mais trabalho e a nossa receita melhorou muito”, afi rma a senhora de sorriso fácil e largo.
O cérebro por trás da cooperativa UGPPK (União dos Grupos de Produtoras de Karitê), no entanto, é masculino. Tagnan Abou Dradin, de 45 anos, é director-geral da organização desde 2007. “Lidar com as mulheres não é difícil, mas tudo depende da sua postura. Você está perdido se acha que é superior pelo simples facto de ser homem”, diz.
Formado em história e arqueologia pela Universidade de Ouagadougou, onde também cursou pós-graduação em comércio internacional, ele comanda uma operação que gerou US$ 550.000 de receita em 2010. Abou também coordena parcerias estratégicas com ONG´s e fundações internacionais, que fi nanciaram a construção de 11 centros de alfabetização para adultas em Léo e o ajudam a manter um programa de microcrédito que benefi cia as cooperativistas.
“O futuro do continente está nas mãos das mulheres”, diz Saddo Ag Almouloud. Presidente da associação Fórum África, o professor de matemática da PUC-SP nasceu no Mali e está no Brasil há 18 anos. Segundo ele, o sexo feminino ganha cada vez mais importância política, social e económica na região.
No Burkina Faso, por exemplo, o governo do presidente Blaise Comparoé – que chegou ao poder depois de um sangrento golpe de Estado em 1987 – criou o Ministério para a Promoção das Mulheres. Não por acaso, o grau de alfabetização entre elas é de 33%, quase sete pontos porcentuais acima da média. “África está a mudar muito rapidamente e os governos sabem que precisam de atender às demandas da população”, afirma a socióloga britânica Amy Niang, especialista no continente africano.
Numa das aulas ministradas nos centros de alfabetização da cooperativa de Léo, mulheres de todas as idades aprendem a ler e a escrever em francês e em alguns dos quase 60 dialectos falados no país. Além disso, elas recebem noções de economia doméstica e informações sobre saúde. Muitas frequentam as aulas com os seus filhos no colo.
Damase Zouré, coordenador nacional da ONG Aide et Action, é o responsável pelo programa. Formado em sociologia pela Universidade de Ouagadougou, ele lida com as mulheres de Léo desde 2004 e já foi convidado a fazer um curso na sede da ONU, em Nova York, graças ao sucesso do seu trabalho. “O nosso método é baseado na filosofia criada pelo brasileiro Paulo Freire”, conta Zouré.
Infelizmente, o analfabetismo está longe de ser o único problema para as mulheres de Burkina Fasso. Segundo a Organização Mundial da Saúde, mais de 70% delas tiveram os seus órgãos genitais extirpados. Prática corriqueira em muitos países africanos e em parte do Sudeste Asiático, a mutilação sexual feminina consiste na retirada total ou parcial do clítoris e no bloqueio de parte dos lábios vaginais. Considerado crime no país desde 1997, o acto ainda é realizado em comunidades rurais e grandes cidades. Geralmente, as meninas enfrentam o ritual de passagem a partir dos quatro anos de idade.
“A lei que proíbe a mutilação sexual ajuda na consciencialização das novas gerações, mas tenho a certeza de que ela vai continuar a ser realizada por muitos anos”, afirma Muriel Cote, geógrafa e pesquisadora da Universidade de Edimburgo (Escócia) que passou dois anos a trabalhar em África.
Mesmo sofrendo com todas as agruras de uma sociedade em que a dignidade é uma conquista diária, as mulheres de Burkina Fasso jamais abandonam a sua alegria de viver. De certa forma, o seu canto uníssono e constante, que dita o ritmo do trabalho e marca as suas celebrações, é a prova concreta de que o prazer pode ser encontrado de diversas formas.
O caminho para a sua emancipação pode ser tortuoso, mas aponta para uma direcção clara rumo ao desenvolvimento do país. “Sobrevivemos com o que ganho na cooperativa e a reforma do meu marido. Eu tenho o meu dinheiro, ele o dele. E cada um paga a sua parte das despesas”, diz Pignan Bassia Mariam. Nada mais justo.