Como é que um arquitecto olha para 52 cidades? O que procura nelas? David Adjaye explica o que viu em África. O arquitecto britânico David Adjaye nasceu em 1966 em Dar-es-Salam, na Tanzânia, numa família originária do Gana. Filho de um diplomata, viajou por muitas cidades de África quando era pequeno.
Nos últimos dez anos voltou a percorrê-las – ao todo 52 capitais (só não incluiu Mogadíscio, na Somália, cidade ainda demasiado marcada pela guerra e pela anarquia) – fotografando a arquitectura e a estrutura, dos velhos “souks” aos edifícios modernistas, passando pela actual frenética construção chinesa.
Presentemente, as suas fotografias estão expostas no ‘Museu da Cidade’, em Lisboa. Em entrevista telefónica, Adjaye contou aonde esta busca o conduziu.
O que procurou em cada cidade que visitou em África? David Adjaye
(DA) – Tento ter o ponto de vista de um visitante e não de alguém com um conhecimento profundo da cidade. Visito a cidade como qualquer outra pessoa, e o que faço geralmente é pedir a um taxista para me levar a todos os bairros, aos sítios públicos.
Olho de forma mais específica para a arquitectura civil, a eclesiástica, a governamental, a institucional e a comercial, que são importantes para ver quais são as agendas económicas do país e como elas se reflectem na arquitectura. Uso a mesma abordagem para as zonas residenciais, das classes ricas, da classe média (se houver classe média) e tento perceber onde vivem os pobres, onde são os bairros de lata.
Como escolhe a fotografia?
(DA) – Faço-o da perspectiva do arquitecto. Nunca fotografo nada para o qual não seja atraído enquanto arquitecto. Tento ser objectivo e não fotografar apenas coisas que me atraiam a um nível emocional. Quero perceber as tipologias de cada sítio.
Ao princípio, parece-nos que as cidades têm uma mistura enorme de estilos, mas no fundo não são assim tantos. Há padrões que se repetem. Por isso, no início fotografo muito, mas a partir de certa altura começo a procurar categorias. Interessam-me muito as tipologias de forma mas também de estilo: varandas, materiais, texturas.
São 52 cidades muito diferentes, mas haverá uma identidade africana que as ligue?
(DA) – O que a exposição quer mostrar é que é um disparate pensar em África como um único sítio. Estamos a falar de um continente, com seis zonas geográficas muito diferentes, e são elas que fazem a identidade de África: o deserto, o Sahel, que é a fronteira do deserto, o Magrebe, que são as áreas costeiras do Norte, a floresta que é a parte do coração tropical de África, a savana e a pradaria, que são as regiões Este e Sul, e as montanhas e os planaltos. São seis identidades, povos e culturas muito diferentes – e paisagens arquitectónicas também.
Existe não apenas arquitectura diferente mas uma organização das cidades diferente?
(DA) – Bom, julgo que quando olhamos para a arquitectura vernacular vemos diferentes tipos de organização da cidade. Mas se olharmos para a arquitectura da cidade, e estamos a falar de cidades que não têm mais de 50 anos, ela é essencialmente produto de um modernismo tardio. Nos casos em que as cidades são mais antigas, o colonialismo erradicou qualquer noção de uma cidade africana autêntica. Há um fragmento colonial, e há aquilo a que poderíamos chamar o fragmento internacional.
Não quero falar de África como o lugar de uma arquitectura vernacular verdadeira, mas como um lugar de modernidade radical, porque teve de lutar com todas estas questões, a última das quais foi a China, com a sua agenda de construção de infra-estruturas. Quando se vai para o campo é muito diferente, aí vê-se arquitectura vernacular e a especificidade de pessoas e de tribos.
As cidades são casos específicos.
(DA) – Sim, existe uma polaridade: a cidade é muito urbana, e o campo é muito rural. E é isso que é bom no continente, não existe nada entre uma coisa e outra, não há ainda subúrbios em África.
Como é que as pessoas lidam com a influência da China hoje?
(DA) – Para os africanos, nos últimos 100 anos de modernidade não tem sido uma ficção ou uma discussão teórica, é uma realidade. Há já várias gerações que a modernidade é a forma de se avançar no mundo.
Até a pessoa mais tradicional em África tem uma relação muito positiva com a modernização. Ao contrário do que aconteceu nos processos de industrialização da Europa e das EUA, em África não houve uma migração do campo para a cidade e uma mudança drástica em duas gerações. As cidades africanas continuam a ter uma forte relação com o campo.
Ao contrário do que acontece na Europa, há uma sensação de pertença a um sítio, e uma noção muito sofisticada de modernidade, que permite negociar o modernismo, o pós-modernismo e até o hiper- -modernismo, este novo tipo de construção promovida pela China, em que as cidades estão a ser feitas muito depressa, com infra-estruturas e torres.
A modernidade que chegou nos anos 80 foi promovida pelas agências internacionais, pelo FMI, de uma forma um pouco dura e é coisa com a qual as pessoas não têm uma relação muito afectiva – é vista como uma arquitectura sem paixão que surgiu apenas por necessidade.
Os chineses, na sua versão de globalização, têm muito mais um lado de parceiros, chegam e querem construir infra-estruturas, mas estão também interessados em explorar os recursos em parceiras com o Governo. Estão aqui para construir o país não para o ocupar.
Mas em termos do resultado é má arquitectura, ou não?
(DA) – É do mesmo nível de arquitectura que é feita na China. De uma forma geral, falta em África arquitectura de grande qualidade. Mas eu não lhe chamaria boa ou má – é o que surge quando a economia está em ascensão e se começam a construir infra-estruturas rapidamente. Muitos destes edifícios não durarão muito. Se calhar nem lhe chamaria arquitectura. Será melhor chamar-lhe desenvolvimento.
Esse desenvolvimento não ameaça a relação de que falou, com o campo e as raízes rurais?
(DA) – Não vejo isso. O que está a acontecer neste processo a que chamo hipermodernização não é uma criação de subúrbios, é mais uma reconstrução da cidade. Essa relação entre o campo e a cidade já foi firmemente estabelecida – admito que daqui a 50 anos esta possa ser uma conversa diferente. Mas julgo que estamos ainda muito longe disso.
Os africanos têm uma relação descontraída com a arquitectura?
(DA) – Têm uma relação menos rígida, não tão formal. Tem muito a ver com o clima. Os climas do norte precisam de alguma formalidade, uma qualidade de forma, enquanto em África há uma relação muito mais horizontal, no sentido em que se tem de jogar com o horizonte, quebrando as fronteiras entre o interior e o exterior. Fazer edifícios como objectos cria esta espécie de troféus, ou formas, que exigem uma sensibilidade diferente que não é a africana.
Diz que não há classe média em África – as construções para habitação são para os muito ricos ou para os muito pobres.
(DA) – É o maior desafio para o continente.
Os chineses não estão a construir para a classe média?
(DA) – Penso que a relação dos chineses com África não tem nada a ver com esse tipo de desenvolvimento, tem mais a ver com infra-estruturas, as estradas, os centros de conferências, os edifícios governamentais. Começa a haver projectos de construções africanas que estão a fazer dinheiro e procuram parceiros chineses porque são parcerias mais vantajosas do que com os arquitectos europeus ou americanos.
Há espaço para os europeus?
(DA) – Se olharmos para o PIB de África, esta é hoje uma das zonas com maior crescimento do mundo. Estamos num momento de passagem de uma necessidade de construção de infra-estruturas para a necessidade de arquitectura, de expressão cívica. E acho que os europeus têm alguma vantagem aí – aliás é por isso que os chineses já empregam vários arquitectos europeus.
Em que fase está o seu projecto em Lisboa da concepção da sede do centro cultural África.cont?
(DA) – Ainda estamos à espera de conseguir os financiamentos necessários. Julgo que Portugal neste momento não está numa boa situação, mas os responsáveis municipais têm sido muito encorajadores. É um projecto que irá avançar mas que neste momento sofre uma pausa.
A abordagem a Lisboa foi semelhante à que usou nas cidades africanas?
Tenho sempre o mesmo tipo de abordagem, que é a de tentar estar muito imerso e captar as coisas que não são evidentes. Vivi em Portugal (no início dos anos 90, trabalhou com Eduardo Souto Moura no Porto) e já conhecia bem Lisboa.
Interessava-me essa parte antiga de Lisboa, o grão dessa zona e como ele é importante para a identidade da cidade, e queria fazer um edifício que reforçasse essas qualidades. Daí o projecto ser como um conjunto de fragmentos que compõem um espaço público e não uma grande forma única e unificadora.