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“Arrancaram-me o coração”, diz uma manhambana que já não quer ser

“Arrancaram-me o coração”

Ela chama-se Fernanda Cunha Vaz. O que nos levou a procurar esta mulher, de 84 anos de idade, a viver em Inhambane desde 1964, não é propriamente por ela ter perdido tudo o que tinha. Moveu-nos o facto de ver vaguear pela cidade, quase todos os dias, um casal de idosos, sempre de mãos dadas. Ou seja, com os braços entrelaçados, uma representação real que nos recorda que, hoje por hoje, praticamente nunca nos cruzarmos nas ruas com casais abraçados. Nem de dia, nem de noite.

Os anciãos Levi Cunha Vaz e Fernanda Cunha Vaz saíam de casa para agradecer e celebrar o esplendor de uma urbe única que lhes acolhe desde os tempos. Sem questionar. Mas este par anda abraçado, ou melhor, andava. Porque ela já não pode locomover-se livremente pelos caminhos asfaltados que lhes conhecem muito bem. “Não posso andar por causa das pernas, elas já não me suportam”.

Fernanda Cunha Vaz parece uma ponte que treme nos fundamentos, e que pode desabar a qualquer momento. Mesmo assim, ainda visita, constantemente, a sua cozinha, arrastando-se para lá com os membros inferiores a rangerem. “Faço esse esforço porque tenho de preparar todos os dias alguma coisa para o meu marido. Gosto de fazer bolos”.

Quando deixámos de os ver andando por aí, sentimos a sua falta. Parecia que um dos monumentos da “terra da boa gente” tinha sucumbido. E sentimo-nos, por isso mesmo, na obrigação de ir atrás deles, nem que fosse apenas para perguntar: “como vai a vida!?”. Na verdade, a vida dos dois não vai muito bem. O marido, Levi Cunha Vaz, teve recentemente uma queda aparatosa nas escadas. Feriu-se na cabeça. E agora está acamado. “Infelizmente não poderás conversar com o meu marido porque não está bem. Está com a cabeça dorida e necessita de mais cuidados médicos”.

Apesar da idade, Fernanda Cunha Vaz mantém a memória em estado saudável. Ainda se lembra das coisas e das datas. Reconheceu imediatamente o repórter do @Verdade quando se anunciou e, a cima de tudo, mantém a serenidade. “Achas que devo dizer alguma coisa para os jornais? Será que vale a pena”?

A sala da minúscula flat onde vive o casal está cheia de lembranças, incluindo um velho televisor que está a transmitir uma emissão da RTP. Aqui e ali vêem-se objectos de colecção arrumadas com desleixo artístico e a sensação que temos é de que o espaço é por demais exíguo para tudo aquilo. Ela própria – Fernanda Cunha Vaz – tem dificuldades de se movimentar na sua própria casa porque os corredores que sobram para tal estão comprimidos. “Este é o meu último reduto. É aqui onde rumino as minhas dores. Eu e o meu marido perdemos quase tudo. Mas será que é importante falar disso?”.

Apesar de toda essa dor, prefere não falar do passado. “O que me dói é que não posso andar e desfrutar da beleza desta cidade que já não é minha. Não é minha porque perdi tudo o que me dava motivo para me sentir daqui”. Para além de ter sido uma grande peça de apoio ao seu marido na gestão da fortuna que tiveram, e que depois passou para a responsabilidade do Estado aquando das nacionalizações, ela deu aulas de Geografia, História e Português. “O meu marido também foi docente, lecionou Biologia, mas, quando os contratos terminaram, sobrevivemos com o pouco que ainda nos sobrava. Felizmente, nunca tivemos privações”.

Mas estamos frente a frente com uma mulher que foi jornalista. “Eu vivo em Moçambique há 54 anos, dos quais 47 aqui em Inhambane. A minha inserção em Moçambique foi rápida. Eu já trabalhava como jornalista, por isso não senti dificuldades. Comecei a escrever aos 15 anos de idade em Portugal, como colaboradora do “Notícias de Aveiro”, para além da minha participação numa publicação brasileira”.

O avô do marido de Fernanda Cunha Vaz chegou a Moçambique por volta de 1900. E ela, fazendo parte da terceira geração, casou-se com Levi Cunha Vaz, na antiga Lourenço Marques, hoje Maputo, “depois é que viemos para aqui, onde estamos até hoje”. Provavelmente seja por isso, depois deste tempo todo, que não faz sentido pensar em regressar às origens. O sangue deste casal está profundamente misturado com esta terra. Toda a vida foi feita aqui. As alegrias, as dores e as coisas indeléveis estão aqui. É por isso que todo o seu pensamento é feito neste perímetro.

O futuro como mira

A nossa intenção, ao ir visitar os dois anciãos na sua casa, era conversar com os dois. Ouvir deles as memórias. Saber dos sonhos que lhes habitam. Perguntar se pensam mais no passado ou no futuro. É isso que nós pretendíamos, mas não o conseguimos porque Levi está acamado e Fernanda não se mostrou predisposta a despregar a bandeira. “Queres que eu te diga o quê? Não estou bem de saúde. Nem eu, nem o meu marido. O pior de tudo isso é que não posso andar. As pernas doem-me”.

Na verdade, o espírito de Fernando parece enfraquecer em simultâneo com o do próprio corpo, apesar de existir o sonho de ver em livro aquilo que andou a publicar em jornais. “Tenho coisas escritas e guardadas, e que gostaria de ver um dia grafadas em livro”. Ela levantou-se no seu corpo leve, envergando umas “jeans”, que sempre usou para esconder as marcas da queimadura que sofreu nas pernas, em tempos.

“Mas para quê falar disso? A vida está pronta, em cada momento, a pregar-nos partidas!” Deu-nos a conhecer alguns títulos de um espólio que ela própria diz ser interminável. E o que tinha à nossa frente serviu para nos esclarecer que esta é uma mulher atenta. Observadora. Crítica. “Eu, hoje, não sei o que é que fizeram à juventude, e questiono-me, o que é que se passa? Os empregados são desobedientes. Será este o homem novo que sempre se perspectivou que já está entre nós? Logo depois da independência sempre se falou da criação do homem novo. Se for este, então não nos deixa com orgulho nenhum”.

A octogenária acha que o sistema educativo no nosso país deve ser melhorado. “Os pais queixam-se porque os filhos não os respeitam nem aceitam uma advertência dos mais velhos, quer dizer, deixou de haver educação moral, canto coral e tantas outras coisas para a educação das crianças. O professor tinha de exigir, tal como exigiamos aos alunos no passado, um comportamento exemplar. Veja que alguns dos meus alunos hoje são pais e avós, mas ainda me respeitam, inclusive ao meu marido”.

Fernanda não aceita a história da globalização como factor da ruptura da moral. Para ela, este é um discurso dos políticos. “Não é para nós. A globalização é uma criação nova. Os pais devem incutir na criança aquilo que há- -de ser no futuro. Eu sou aquilo que o meu pai quis que fosse. Se eu me comportasse erradamente, dava-me uma boa bofetada e obedecia. A educação das crianças deve começar em casa, guiada pelos pais”.

Ela tem saudades do respeito, da amizade e do amor. “Nas vias públicas as pessoas ocupam os passeios, paradas ou sentadas, e você tem que se desviar e em muitos casos tem que entrar na faixa de rodagem de viaturas com o risco de ser atropelado. Antigamente havia respeito”. Apesar de tudo isso, continua a sonhar. Ela sabe quão é difícil passar para o sistema electrónico tudo aquilo que andou a escrever neste tempo todo da vida. “Eu tinha o material sistematizado, mas tive um problema com o meu computador, e quando o mandei reparar voltou vazio. Completamente vazio. Agora imagina a dor que isso me causa”.

Fernanda conta esta história em voz ténue. Temos que prestar muita atenção para perceber as palavras. E perceber também o seu sentido. Ou seja, mesmo com a dor de ter perdido tudo, ela ainda sonha com um livro, que seria uma forma de se homenagear a si própria, de valorizar o seu trabalho. Mas quem sabe se um dia esta obra não virá! Por enquanto, fica este texto que pretendia explorar a história de um casal de idosos que já não é visto nas ruas da cidade. “Falar do nosso percurso para quê? Será que vale a pena?”.

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