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Apesar de tudo, a vida continua

Apesar de tudo

Mazumana

Num dos bairros com menor poder de compra do grande Maputo, algumas pessoas vivem do que o sacrifício garante e Deus promete. Na Mafalala, falta quase tudo. Mas para Lulu, com a peneira de amendoim nos braços, sobeja a certeza de que a maior das fortunas é ter fé, saúde e crianças em seu redor.

O dia ainda não se decidiu a nascer, o vento desliza pelas ruas, aquieta-se nas bermas das paredes de zinco, assobia nos charcos de água suja. São seis e picos da manhã quando uma porta, desengonçada pelo uso e pelo tempo, se abre. Do outro lado está Lulu, Lúcia Sigaúque no assento de nascimento. Lulu desconhece aconchegos, o sol abrasador é a mais doce de suas penas. Tem 54 anos e uma peneira de amendoim torrado entre os braços. Agora é hora de partir para vender nas ruas da cidade de Maputo. A receita garante o sustento da própria e de mais cinco: três filhas, a mais nova com 24 anos, e dois netos, que já andam na escola. “A vida não está nada fácil.” Lulu é mulher de fibra, não alinha nos queixumes da velhice nem disputa doenças com as vizinhas, mas pedirlhe para falar do seu trabalho abala-lhe a estrutura. Os olhos molham-se um pouco. “Não está nada fácil”, repete. Há mais de 21 anos o sonho das minas levou-lhe o marido, não se sabe para onde. Há dez anos, perdeu o emprego como doméstica. Foram 26 anos de labuta em casa de uns suecos e depois nada: os dias vazios, o retrato de um homem na parede como que a dizer-lhe anima-te. “Olhe, sabe o que faço? Ando sem parar, para tentar vender tudo.

” Apesar da idade, da pobreza, do trabalho de escravo para levar comida à boca dos seus e de um rosto carregado de rugas, Lulu transporta no olhar a alegria própria das anciãs. Não sabe onde se encontra o marido, partiu para as terras do rand, não sabe quando, mas diz que fora antes de Machel morrer. Nunca mais voltou, mas Lulu acredita que o velho Matavel “está longe de casa a amealhar sustento.”

A peneira de amendoim polvilha a paz no lar. No seu encalço, vêm e vão clientes. Deixam dois meticais e em troca levam uma tampa de três centímetros de diâmetro por um de comprimento, onde cabem oito ou nove amendoins. Mas nem sempre vende tudo. Nos dias “sim”, faz 150 meticais. Lulu deu os primeiros passos a plantar amendoim e advinha que é vendendo o cereal que dará os últimos. Partindo dos Acordos de Lusaca até chegar à Eduardo Mondlane, hoje, terça-feira, dia 21 de Outubro, Lulu já arrecadou 30 meticais: “O jantar e o almoço de amanhã estão garantidos”, diz com olhos arregalados de felicidade. A pobreza cola-se-lhe à pele, mas nunca ao sorriso. A sua fortuna cabe inteirinha numa caixinha de lata azulceleste, “Milgro” inscrito a dourado, onde arrecada notas e moedas.

Nasceu camponesa numa localidade no interior de Manjakaze (Gaza), mas é em Maputo onde vive. Não sabe ler, caderno e caneta são pedaços de vida que não entende. Estranha os jovens, o barulho, os assuntos, as roupas… O seu mundo pertence a outros costumes. “Tsh! Massinguitoo!”, fecha os olhos ao ver uma jovem com uma saia relativamente curta, não se acostumou ainda às excentricidades do século XXI . Às vezes, confessa pensamentos aos cereais, conversa de velhos, coisas de atrasados. Era meio-dia quando chegou ao Goa, Ten Club para os frequentadores assíduos. Um homem a tresandar a álcool cambaleia, outro dá o mote: “ I mali muni mazumana?”, pergunta. “I dois conto”, responde a anciã, mas já sabe que dificilmente irá vender naquele lugar. “Todos querem comprar fiado.” A ida ao Goa é um ritual que repete religiosamente, mas sempre sem sucesso.

Diz o olhar da anciã, que Goa é o lugar mais amargo para vender tudo o que não seja álcool. Onde há bêbedos há zaragata e por isso Lulu parte rapidamente Eduardo Mondlane abaixo. Chegada a Julius Nyerere é hora de fazer o trajecto inverso. A caixinha azul-celeste esconde agora 70 meticais, fruto de muitas paragens, compradores sem rosto, anónimos, mas são eles que, dia após dia, lhe garantem o sustento. Mas atenção, nem tudo é lucro, 50 Meticais irão servir para comprar material para a labuta do dia seguinte.

Ao fim-de-semana o negócio cresce, chegando a fazer 200 meticais numa manhã, principalmente aos sábados. “Fico ali no passeio da Assembleia de Deus, em frente a Pandora. Ali vende-se bem quando há missa.” Por volta das 18 horas, já o sol se esgueira na Mafalala, e lá vem Lulu, a peneira sempre à frente, a caminho da casinha onde pernoita. “Paíto, Zezinho”, grita o nome dos netos, os seus maiores tesouros. Segue feliz da vida, apesar da pobreza. Sonhar é um verbo que conjuga todos os dias. Mas nada pede, nada exige da vida, demora a urdir um querer: “Ah, já sei! Ver os meus netos crescerem e o meu marido regressar, enquanto debaixo do braço flácido, carrega a sua maior fortuna: a caixinha de lata azul-celeste “Milgro” inscrito a dourado.

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