Uma andorinha canta alegrias no espaço. De pança também cheia, baila. Liberta os intestinos e a caganita balança na cloaca. Cede à gravidade e cai no olho do imperador.
In As andorinhas – Paulina Chiziane
Paulina Chiziane – primeira romancista moçambicana – voltou à sua condição de contadora de histórias. Ela é, na verdade, uma contadora de histórias. Depois de Balada de Amor ao Vento (1990), Ventos do Apocalipse (1995), O Sétimo Juramento (2000), Niketche – Uma historia de Poligamia (2002) e o Alegre Canto da Perdiz (2008), ei-la aqui, agora, com As Andorinhas, como se estivesse à volta da fogueira, onde se sente bem.
Será uma nova incursão, desta mulher nascida em Manjacaze, constituída de relatos em torno de três personalidades. A primeira é um gordo que chefiava um império, porém, atrapalhado por uma andorinha cuja caganita lhe caíra no olho. A segunda, um nobre, que viveu numa extrema pobreza, mas conquistou a América mesmo com os pés descalços. A sexualidade da terceira foi questionada por outras mulheres porque, entre tantas anomalias, nada fazia para ter uma pele lisa como o caju, para agradar aos homens. Foi pontapeada por se intrometer em coisas masculinas.
O golo extraordinário foi marcado por uma mulher que nem parece mulher, aquilo parece golo de um homem mesmo, é espantoso, as mulheres não percebem nada de futebol e nem sabem jogar! Foi extraordinário! Esta mulher vibrou, brilhou, mostrou o que valia, parecia até uma águia no meio de galinhas.
O livro de Paulina Chiziane narra, sucessivamente, a rivalidade de dois povos amigos, a rota invejável de um unificador que não viveu para celebrar o seu sonho, a glória de uma águia que foi ao encontro do sol e elevou como ninguém a bandeira da sua nação.
A liberdade vive-se, dizia Nguyuza, o general desertor. Como explicar, então, às crianças o conceito de liberdade, quando, por todo o lado, há prisão, xibalo, deportação? Como explicar que liberdade é palavra, semente, diamante? Como ensinar que a liberdade é a fêmea que dará à luz uma nova estrela?
Segundo Amâncio Miguel, prefaciador da obra, As Andorinhas é um livro que sai numa altura em que, acentuadamente, se fala das vantagens e desvantagens da globalização. “Alguns referem-se a isso como se de um barco abarrotado de referências do além se tratasse, que leiloa, sem quaisquer regras, soluções, para uma infinita gama de problemas”.
Há, porém, quem diga que ao dito barco falta a consultora da lucidez, o que tem levado a que tais “soluções” sejam despejadas sem ter em conta o conhecimento local. “Chiziane brinda-nos com pitadas dessa lucidez, mostrando-nos que se trata de um assunto antigo: não terá sido por falta de lucidez que, noutros tempos, o imperador levou muitas luas para perceber que não existiam chicotes para castigar andorinhas”.
O corpo gordo ergue-se como uma mola, movido pela fúria. Dos olhos túrgidos, solta-se o dragão que dorme por dentro. O imperador podia resistir a tudo menos àquele ultraje: cocó de pássaro? Não, não podia suportar. Ele, que venceu todas as batalhas, que transformou a vida, que vavou as orelhas dos cativos, que fecundou todas as mulheres da terra, que ngungunhou todos à sua medida, não pode ser abusado por um simples pássaro.
Desvairado, chama pelos seus guerreiros. Hoje ele é dragão, ele é leão. Ele ruge.
– Nguyuza! Lumbulule! Marivate! Khumalo! Sitói!
O grito que solta corta a respiração de quem o escuta. Os homens vieram correndo. Ajoelhados diante do soberano, recitam em uníssono.
– Às ordens, alteza
– Quem manda debaixo do sol?
– Deus – respondem de novo em uníssono.
– Deus? – A raiva do imperador cresce.
– Sim.
– Quem é Deus aqui?
O Nguyuza é o primeiro a falar. É o chefe. A ele cabe a primeira palavra e ao imperador a última.
– O nosso imperador é Deus. É o Mambo dos ambos, o Nkulukulu.
Esta escritora chope, filha de alfaiate de esquina e de uma camponesa, dona de casa, usa o seu poder de contadora de histórias para partilhar o percurso das três personalidades referenciadas, desafiando o leitor com um debate sobre o passado que estabelece com Chitlango, filho de chefe, titulo da conhecida biografia de Eduardo Mondlane.
“Meu pobre imperador, a geração que vem buscará a nossa grandeza em monumentos de pedra, sem perceber que nós, antepassados, escrevemos a nossa história em monumentos de sangue. Os nossos descendentes rir-se-ão das nossas crenças, das nossas rezas, comerão peixe e todos os insectos marinhos, sem se importarem com a nossa realeza, tudo muda, ah, meu gordo imperador”.