Diante de uma realidade marcada pela escassez de realização de eventos culturais (com destaque para a área da literatura) com grande visibilidade, e pela reincidência dos mesmos escritores na publicação de novos livros, incluindo concursos literários cuja premiação dos vencedores resulta de esquemas de concertação prévia, tal cenário leva a que o escritor moçambicano, Andes Chivangue, revele que “a literatura moçambicana está moribunda”.
Chama-se Andes Chivangue e é natural de Xai-Xai, província de Gaza. Conhecido pelas suas opiniões, invariavelmente, contundentes, segundo ele, não passam de simples verdades as quais as pessoas envolvidas na literatura moçambicana protelam o seu tratamento.
Considera que no seio dos escritores moçambicanos há um problema pernicioso reinante, a falta de humildade. É nesse sentido que, falando a seu respeito, lhes recorda de que “a literatura é uma prática sagrada, algo muito especial, daí que eu não tenho problemas de assumir que não me considero um escritor.
É verdade que aprecio a escrita e esta disciplina artística que é a literatura. Sempre que tiver a oportunidade publico livros, mas nem por isso sou um escriba assumido porque tenho conhecimento de que existem pessoas que se dedicam à literatura como profissão”.
Entretanto, ainda que sagrada, merecendo por isso algum respeito por parte de quem lida com ela, a literatura moçambicana, enquanto um sistema digno de tal nome, carece de uma legislação e de políticas eficazes com vista à orientação do rumo da referida actividade artístico-cultural.
“Sinto que precisamos de mais acções para transformar o cenário da literatura moçambicana, o que só é possível com a existência de políticas claras para o sector. O outro aspecto, reitero, é a necessidade de os novos escritores serem, cada vez mais, humildes porque o que sucede é que, muitos deles, assim que conseguem publicar um livro pensam que são os maiores escritores do país. Em resultado disso, não lhes são dirigidas críticas”.
Há alguns anos, o silêncio pernicioso que marca a literatura moçambicana (o que, sobretudo, contribui para a estabilidade do actual estado da realidade) moveu Andes Chivangue, em parceria com o seu confrade, o escritor moçambicano Dó Midó das Dores, com o qual dinamizou o Núcleo Literário de Xitende, na província de Gaza, a promover um debate social que decorreu sob o mote A Morte da Literatura Moçambicana.
Literatura moribunda
É sobre o mesmo tópico que, muito recentemente, @Verdade questionou Chivangue sobre o actual estágio da literatura moçambicana. Ou seja, se na sua opinião, ela, a literatura moçambicana continuava “morta” como considerara há anos ou o cenário sofreu alguma transformação?
Para Chivangue, “afirmar que a literatura moçambicana está ´morta` foi (apenas) uma forma de colocar o problema ao debate. A verdade, porém, é que, presentemente, a nossa literatura está moribunda”, considera, ao mesmo tempo que elabora um novo argumento.
“Se analisarmos os factos, desde quando o nosso debate foi realizado, constatamos que muitas questões ficam sem resposta favorável: Quantos novos escritores surgiram no país? Quantos eventos de grande envergadura, na literatura moçambicana, foram realizados?
A verdade é que apenas escritores como Mia Couto, Paulina Chiziane, Ungulane Ba Ka Khosa, Marcelo Panguane, por exemplo, é que, sistematicamente, publicam novos livros. É evidente que há alguns escritores jovens como, por exemplo, Lucílio Manjate, Rogério Manjate, Mbate Pedro que têm tido oportunidade de publicar, mas os números são muito reduzidos”.
O que acontece é que “quando nós, eu e o Midó, aparecemos com o debate da “morte” da literatura moçambicana, tínhamos o objectivo de alertar a sociedade sobre esta realidade, daí que realizámos um discurso aparentemente polémico para chamar a atenção sobre o cenário que se estava a instalar a partir dessa altura”.
Muita promiscuidade
Ao certo o que é que estava a acontecer nos anos em que se realizou o debate sobre a “morte” da literatura moçambicana? “Em Moçambique existe uma promiscuidade entre a literatura e a política, incluindo o Poder político. Alguns escritores “usam” a literatura para ganharem visibilidade em cargos políticos. O outro aspecto é que se analisarmos os concursos literários realizados no país, fica-se com a sensação de que se está num campo marcado por muita sujidade”.
“Mais preocupante ainda é que prevalece um medo abismal em relação à necessidade de se realizar alguma denúncia da referida realidade. Por exemplo, se Andes Chivangue publica um livro e Eduardo Quive não tem uma crítica favorável sobre o mesmo, o que normalmente acontece é que este não critica, no entanto, fala em fóruns não muito apropriados.
Isso coarcta a nossa evolução. É este cenário que cria uma situação de letargia, uma realidade que propicia a nossa estagnação que se caracteriza pela existência dos mesmos escritores a publicar novos livros”.
O outro aspecto apontado por Andes Chivangue como um factor que contribui para o fraco desenvolvimento não somente da literatura, como de todas as actividades artístico-culturais no país, é a falta de investimento.
Um músico falhado
Andes Chivangue considera que apesar de o seu pai ser professor de profissão, associado ao facto de que a sua mãe é funcionária do Instituto Nacional do Livro e do Disco, ao nível da província de Gaza, o que contribuiu para que crescesse num ambiente rodeado de livros, não teve nenhuma influência dos seus familiares para se tornar escriba.
Mas mesmo assim, reitera que “o meu grande vício são os livros. Tenho uma compulsão muito grande pelos livros. Não consigo entrar numa livraria, tendo algum dinheiro, e sair sem uma manual”.
No entanto, apesar de tal ambiente ter sido favorável para que Andes Chivangue ganhasse os primeiros impulsos para a literatura, o escritor revela que os seus vícios, na arte, não se limitam à literatura: “O meu primeiro vício é a música. Desde quando tinha nove anos de idade, aprecio muito a música, é por essa razão que um dos meus hobbies é a colecção de discos. Ou seja, já quis ser um músico”.
Um escriba preocupado com os tempos
Na literatura, Andes Chivangue estreou- se com a publicação poética Alma Trancada Nos Dentes, em 2007. Acerca da mesma obra, o autor não quis gorar as expectativas dos seus leitores. Por essa razão, inspirou-se nas obras de escritores conhecidos como, por exemplo, Manuel Gusmão, Ferreira Gular e Leopoldo Maria Panero que são originários de países como Portugal, Brasil e Espanha, respectivamente.
O que fundamenta a relação de Andes com os referidos escritores? O facto é que “Manuel Gusmão, no seu livro Migrações do Fogo, que considero espectacular, realiza uma ligação entre a literatura e a imagem, aplicando algumas técnicas do cinema, o que, em parte, denuncia o seu domínio intelectual em relação à chamada sétima arte.
Por outro lado, “em Ferreira Gular, que para mim é o maior poeta vivo cujas obras tenho lido, encontrei uma inspiração na forma como escreve o poeta Herberto Hélder. O quarto escritor é Leopoldo Maria Panero, um poeta espanhol que tem um livro que se chama Narciso no Acorde Último das Flautas”.
Portanto, essas são as referências bibliográficas que originaram a obra poética “Alma Trancada nos Dentes” cujo autor considera ser um livro “muito denso sob o ponto de vista de imagens. Ora, isso é algo propositado, porque quis trabalhar com a metáfora até à náusea. E é por isso que ele é um pouco pesado até um certo grau”.
No seu prefácio à obra A Febre dos Deuses, Ungulani Ba Ka Khosa considera que, ao ler o livro, percebeu que “na savana da nossa narrativa árvores de outra cor se erguiam”, sobretudo quando se deu conta de que a escrita de Chivangue contém uma “frase curta, limpa, enxuta” o que lhe fez concluir que “entrava de novo na rota dos nossos tempos literários”.