@ VERDADE reproduz aqui algumas das reacções à morte de Carlos Cardoso publicadas na edição do Metical nº 866 do dia 24 de Novembro de 2000.
Cardoso a Quente
Fiquei chocado quando ontem me perguntaram se conhecia anedotas do Carlos Cardoso, no rescaldo do horror tantas vezes antecipado em conversas restritas, inclusive com o próprio. Percebi e percebo agora que a recordação dos momentos mais desconcertantes na companhia do Cardoso têm sido para mim a melhor terapia para lidar com a situação. Passam-me pela mente, em “flashes” sucessivos, o “projecto berlindes por sementes de papaieira”, o “serviço de poesia via telex” e a pintura no forno de cozinha. Eu explico-me.
Na sua luta muito pessoal contra o repolho e o carapau dos anos 80’, o Cardoso resolveu utilizar as relações institucionais entre a agência noticiosa moçambicana e as suas congéneres estrangeiras para que fossem enviados berlindes para Maputo. Milhares de berlindes, que eram trocados por pés de papaieira, árvore de crescimento rápido e de frutos de reconhecido valor nutricional.
Ainda hoje estou a ver o formalíssimo director geral da ADN da RDA com um saco enorme de berlindes a desembarcar em Maputo. Meses depois coube a vez ao director da cooperação da então ANOP portuguesa. Neste folhetim, eu representava a parte conservadora, fazendo-lhe lembrar que era inaceitável misturar berlindes com cooperação inter-agências.
No assunto as poesias, o Cardoso, fascinado pelo matraquear dos telexes ao comando das fitas picotadas, era completamente surdo aos meus argumentos de inviabilidade económicocomercial. A “pintura do forno” tem a ver com genialidade e paixão. Ao guache, aguarela e graxa para sapatos, adicionou um toque de forno às suas telas. Era assim. O Cardoso era inimitável. Era igual a si próprio e talvez por isso, dado a frequentes cogitações de umbigo. Em todas as suas tendências, ele adicionava sempre um toque de talento – na viola, no canto (e daí o “nickname” de Cat via apelidado Stevens), no futebol, na dança (é verdade, este radical varria salões, na poesia (…os cheiros chamanculos invadindo a Friedrich Engels), nos afectos. E por isso, quando a paixão do jornalismo entrou em crise em 1989, dedicou-se à pintura.
No seu idealismo – com mesclas de ingenuidade – Cardoso acreditava que libertando-se de director, tinha finalmente espaço para escrever. O sistema, que já não era socialista mas mantinha intactos os estigmas autoritários, condimentado com um substituto burocrata e medíocre mataram-lhe extemporaneamente o sonho. O liberalismo não o deslumbrou.
Na revolução, quando os inveterados que nunca deixaram de estar presentes nas diversas direcções da ONJ/SNJ diziam ámen, Cardoso pediu eleições democráticas.
Quando a Constituição projecto esqueceu a liberdade de imprensa, Cardoso deu a cara para discordar, quando a ONJ/SNJ, mais uma vez, meteu o rabo entre as pernas. Quando a promoção do capitalismo é confundida com discurso de modernidade, Cardoso continuou fiel aos seus ideais de esquerda. Não no dogma e no cliché, mas no questionar permanente, como afinal sempre defendeu Marx.
Em 1991 desaguou naturalmente na Mediacoop e o seu nome ficará para sempre ligado à criação do “mediaFAX”. Bateu com a porta cinco anos mais tarde, quando uma proposta de autonomia não sobreviveu ao voto democrático dos seus confrades. Homem de causas e bandeiras, senhor de opiniões muito próprias, empreendeu depois a aventura de timoneiro a solo no “Metical” onde a morte o emboscou. E por falar em causas e bandeiras, termino com um “flashback” aos anos 80’.
Das inúmeras reuniões convocadas no Ministério de Informação para zurzir a sua frontalidade e irreverência, lembro-me de uma referência de ministro que serve mais ou menos de epitáfio: “O Carlos Cardoso tem esta qualidade particular de olharmos para ele e ver tudo claro e transparente. Poucos de nós temos esta qualidade, esta pureza. É um homem de causas. É porventura um homem que consegue ver mais à frente que nós outros. E quando vamos ao combate, numa formação que tem hierarquias e posições, como o Cardoso transporta a bandeira é mais facilmente alvejado”. Ontem lembrei-me mais uma vez deste comentário lapidar. Independentemente de ministros condescendentes, só nos resta continuar a carregar a bandeira.
*Fernando Lima chefe de redacção de Carlos Cardoso na AIM, co-fundador da Mediacoop, amigo e sempre crítico do Carlos Cardoso. (Actualmente é PCA da Mediacoop). (…)
“Com a morte do Carlos Cardoso fica seriamente ferida uma das maiores conquistas do pós-independência: a liberdade de expressão e de imprensa. Carlos Cardoso sempre se bateu por uma imprensa livre, íntegra e actuante. Ele era a personificação do jornalista íntegro, descomprometido, comprometido apenas com a verdade. Cardoso era a voz dos sem voz. E talvez, por isso, se tenha tornado incómodo para determinadas forças obscuras que não querem a paz, a transparência, o desenvolvimento e o pluralismo de ideias em Moçambique. Essas forças julgam que ao silenciarem Carlos Cardoso vão silenciar os jornalistas, os profissionais da informação neste país”
(…) Conselho Superior da Comunicação Social
“Carlos Cardoso foi vítima, sem dúvida, do combate contra a corrupção e contra o crime organizado. Morreu em combate na luta pela justiça e pela verdade, e na denúncia de situações que a curto prazo poderão pôr em causa a continuidade do próprio Estado. Morreu um combatente da luta por um jornalismo sério, isento e interventivo e participativo na educação cívica dos cidadãos”
(…) António Albano Silva
“Carlos, Lágrimas, dor e um sentimento profundo de vazio pela perda da tua presença entre nós. Inesperadamente e antes do tempo nos deixaste. Mentes assassinas e mãos bárbaras, inimigas da verdade, numa ilusão de eternidade efémera, acharam que conseguiriam calar a razão da tua luta, do teu saber estar no mundo, o teu altruísmo numa entrega ímpar pelas causas da verdade.
Carolina
“(…) Perdemos um compatriota, um companheiro que se distinguiu especialmente pela sua luta incessante pela verdade e bem estar dos seus concidadãos. Carlos Cardoso foi um homem vertical, um jornalista combativo, coerente e destemido. Um homem de convicções muito fortes e que defendia as suas ideias com persistência e tenacidade. Por isso, era um jornalista conhecido e respeitado dentro e fora de Moçambique. O assassinato brutal e cruel deste concidadão foi um acto de cobardia, um atentado à liberdade, uma tentativa de silenciar as vozes que lutam pela honestidade e pelo progresso do nosso país (…)”
Pascoal Mocumbi, então primeiro-ministro
Quem será o próximo? O autor destas linhas foi quem reconheceu o corpo de Carlos Cardoso, ensanguentado e crivado de balas no seu carro. Nem os Polícias do carro patrulha, nem as testemunhas sabiam quem era o “branco” que estava sem vida, com o corpo inanimado sobre o banco. Alertado por um tiroteio que tinha tido lugar alguns minutos antes, dirigi-me a correr, como jornalista, para saber o que se passava. (…) Só me resta perguntar: quem será o próximo? Que merda de País é este?
Leandro Paul
“O MISA-MOÇAMBIQUE entende que o bárbaro assassinato de Carlos Cardoso mancha a boa reputação de Moçambique como um país de liberdade de expressão e de imprensa em África e remete para períodos sombrios da sua História passada em que falar a verdade equivalia a candidatar-se à morte certa. Carlos Cardoso foi sempre um lutador incansável pela liberdade de expressão e de Imprensa e o seu nome vai ficar indiscutivelmente associado à luta do povo moçambicano pelas liberdades democráticas. A morte cruel de Carlos Cardoso priva a imprensa e a sociedade moçambicana de uma voz livre e contundente que abalava os corruptos e os inimigos da transparência nos actos públicos. Carlos Cardoso foi morto pelos inimigos que ele mais defendia: a transferência, a participação de moçambicanos no controlo da sua economia, combate à corrupção e à impunidade de criminosos que lesam a economia nacional. (…)”
O Presidente do MISA-Moçambique Salomão Moyana (actualmente é director do jornal Magazine Independente).