Uma adolescente foi brutalmente espancada pelos seus pais no município de Catandica, na província de Manica, pois recusou-se a abandonar os seus estudos e tornar-se na segunda esposa do marido da sua tia. A rapariga tenta fugir da tradição local, profetizada pelo Mudzimo, e das estatísticas, que colocam Moçambique como um dos dez países no mundo onde mais mulheres casam antes dos 18 anos de idade.
O Mudzimo, o espírito da família, ordenou quando Laura*, uma das doze filhas do casal Nzvenga, ainda era bebé que ela deveria casar-se quando completasse 16 anos de idade. Ironicamente o Mudzimo “falou” através da esposa do interessado no casamento, um cidadão com mais de 40 anos de idade com quem ela tem cinco filhos.
Mais irónico ainda é que esta mulher, que é casada com o pretendente de Laura e através da qual o Mudzimo “expressa-se”, é irmã do pai da adolescente que reside no bairro Mugabe, no município de Catandica, no distrito de Bárue.
Laura, que nunca percebeu a atenção especial da tia, que ao longo dos anos além de afeição especial presenteava-lhe com vestuário e outros objectos de beleza e adorno, recusa-se a abandonar a escola, onde frequenta a oitava classe, e quer perseguir o seu sonho de ser professora.
Contudo, para manter a tradição local e evitar ter que indemnizar o pretendente os pais de Laura, depois de esgotarem as palavras de incentivo ao casamento decidiram no passado sábado (09) espanca-la para que ela cumprisse os seus desejos.
Além de agressões com as mãos Laura foi agredida com um pau em todo o seu corpo, pelos seus pais e, quando ela já jazia no chão, ainda a pisotearam alegadamente porque a jovem estará possuída por um espírito mau que não a quer deixar casar.
A nossa reportagem apurou que o investimento feito pela tia ao longo dos anos está estimado em 3.500 meticais mas que em caso de recusa do casamento os pais de Laura devem indemnizar os pretendentes em cerca de 14 mil meticais.
Neste distrito da região central de Moçambique não só os casamentos entre raparigas com menos de 18 anos e adultos são normais como também é vulgar a bigamia. São do conhecimento das comunidades, e das autoridades, que pais entregam as suas filhas a homens adultos em troca de dinheiro ou mesmo de gado.
Embora os casamentos prematuros afectem uma em cada duas raparigas, de acordo com o Inquérito Demográfico e de Saúde de 2011, e a elevada taxa de mortalidade materna seja aliada as gravidezes que essas meninas cedo têm de carregar só em Dezembro de 2015 é que o Governo aprovou uma Estratégia Nacional de Prevenção e Combate aos Casamentos Prematuros.
Em termos práticos as acções de combate aos casamentos precoces não passam de campanhas de sensibilização que claramente não surtem efeito pois a cultura e as tradições locais continuam a falar mais alto e milhares de raparigas continuam a serem obrigadas a casar com homens mais velhos com a cumplicidade da família e mesmo das autoridades governamentais.
É que embora tenha sido criada a Lei da Família em 2004, que impede o casamento a cidadãos com menos de 18 anos de idade, esse mesmo dispositivo legal admite, no número 2 do artigo 30, que a “mulher ou homem com mais de dezasseis anos, a título excepcional, pode contrair casamento, quando ocorram circunstâncias de reconhecido interesse público e familiar e houver consentimento dos pais ou dos legais representantes.”
Por outro lado as autoridades judiciais quase não aplicam o artigo 206 do Código Penal que pune a bigamia, é que vários dos casos de casamentos prematuros envolvem cidadãos adultos que já são casados, ou vivem em união de facto com outra mulher, logo uma nova união constitui crime.
Laura terá de ter mais do que sorte para escapar do futuro que o Mudzimo ordenou e, ao que tudo indica, os seus progenitores pretendem fazer cumprir. Após a violência que foi vítima, e não foi reportada às autoridades policiais locais, continua a viver em casa dos seus pais, um casal de camponeses que teve outros 29 filhos, e espera poder continuar na escola neste ano lectivo.
Por enquanto Laura parece ter ludibriado o Mudzimo, pois este profetizou que caso não se casasse com o tio iria morrer em três dias, passaram já cinco dias e continua viva.
* nome fictício para para protecção da menor.
** Recolha de John Chekwa