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Achirafo Abubacar – De mestre da bola a Meritíssimo Juiz

Achirafo Abubacar - De mestre da bola a Meritíssimo Juiz

Aos treze anos, apenas com a quarta classe, perdeu o pai e teve de deixar de estudar, para ganhar a vida, apoiado pela mãe e pelo irmão mais velho. O futebol era a paixão. Só treze anos depois retomou os livros, ingressando em aulas de educação de adultos, a pensar num curso de contabilidade. Terminada a secundária, ingressou no Instituto Comercial. Mais tarde, um amigo, o Alfredo Muchanga, propôs-lhe um desafi o: o ensino superior. Pensou em Economia, mas aceitou cursar Direito. Cinco anos depois, formou-se e daí para a Magistratura foi um passo. O caso BCM terá sido o que mais impacto teve na opinião pública, mas outros bem “quentes” lhe tinham antes passado pelas mãos.

Jura, pela sua honra, dizer a verdade e só a verdade, nesta entrevista sobre a sua paixão pelo desporto?

(Risos) Sem dúvida!

Assim começava a entrevista, longe do ambiente carregado dos tribunais. Traje informal, sorriso de orelha a orelha, temos à nossa frente Achirafo Abubacar, o juiz do Caso BCM. Para os amigos, o nosso personagem é conhecido apenas por um nome de quatro letras: Fito.

Ex-futebolista que esteve bem próximo do profi ssionalismo no Benfi ca de Lisboa, paráquedista/ campeão de créditos fi rmados, o Dr. Achirafo falou com grande paixão da sua vida desportiva, descendo ao pormenor. E tal como lhe vimos fazer no julgamento a que presidiu, nunca lhe quisemos cortar a palavra, mesmo sabendo que muitos dos detalhes não seriam de grande importância para os nossos leitores. Neste trabalho em que se pretende mostrar a outra face deste magistrado, um homem que queria conquistar o país com os seus pontapés, mas que acabou vendo-o a seus pés, graças à forma exemplar como dirigiu um dos mais mediáticos e complexos julgamentos de quantos foram levados a cabo em Moçambique.

 

Perde-se um futebolista ou ganhou-se um bom juiz?

 

 

O país deverá chorar por ter perdido um grande futebolista, ou congratular-se por ter ganho um grande juiz? E o pára- quedismo, onde é que fica?

Quanto ao pára-quedismo, acho que cumpri, fazendo o que desejava e ambicionava. Pertenci ao que de melhor houve neste país. Do futebol, pela grande paixão que sempre tive, fi ca a tristeza de não ter sido profi ssional. Sobre o facto de o país ter ganho um grande juiz, não me compete a mim julgar. Mas o que posso garantir é que a Magistratura moçambicana tem em mim mais um juiz muito interessado pela causa.

Comece então por nos dizer, como e quando é que surge essa paixão pelo desporto-rei?

O futebol foi o desporto de infância e a julgar pelo que os meus amigos diziam, eu tinha condições para vir a ser um verdadeiro craque. Era de facto uma paixão na zona em que vivia, próximo do campo do Mahafi l. Comecei nos infantis de Mário Romeu, em 1968/69, mas depois fui para o Benfi ca de Lourenço Marques, actuando na equipa “B”. Este foi o começo.

Após várias peripécias, foi em Portugal e prestes a ingressar na Força Aérea, que Fito teve oportunidades de abraçar o futebol profi ssional. Contenos lá.

Fui para a base de Tancos, mais outros moçambicanos, para a Força Aérea Portuguesa. Mas antes da integração, fomos convidados, eu e o Simões, a fazer testes num jogo, pelo Almeirim, contra o Sport Saudade e Benfi ca, onde pontifi cavam algumas estrelas recém-retiradas do Benfi ca. Lembro-me que sobressaíam os nomes de José Augusto e Cruz. A minha presença e a do meu colega de aventura, havia sido anunciada com pompa e criou-se uma grande expectativa para ver os dois pretos, recém-vindos de Moçambique, a jogarem. Entrámos na segunda parte, houve uma grande ovação. Logo de início, numa jogada ao estilo do Simões, ele fez um “drible” e disparou de longe, tendo a bola batido na trave. Eu pensei: bem, o Simões está safo. A seguir, faço eu uma jogada em que isolo o extremo esquerdo, ele devolve-me o esférico à entrada da área e faço um golo. Então, digo para o meu companheiro: parece que já estamos safos. Eles fi caram maravilhados.

Experiência coroada de êxito e depois?

Aconteceu que o nosso curso de pára-quedistas foi o primeiro em que se introduziram testes psicotécnicos. A maior parte dos moçambicanos foi chumbada e passámos a sentir-nos isolados. Houve muitas difi culdades no contacto com os dirigentes do Almeirim, pelo que me dediquei ao que me levou a Portugal, que era o serviço militar. Mesmo assim, numa ocasião em que fui ao Estádio da Luz, assistir aos treinos do Benfi ca, o Messias Timbana deu de mim boas referências aos dirigentes, falando muito a sério sobre as minhas capacidades. Houve uma aproximação, estive para fazer testes no Glorioso, mas surgiu uma situação nova, já no fi m da recruta e que terá feito gorar aquela que era uma grande oportunidade: um colega da Força Aérea, natural de lá, havia sido colocado em Moçambique, enquanto eu fi caria em Portugal. Propôs-me a troca. As saudades da família e da terra, não me fi zeram pensar duas vezes. Além disso, o tempo da tropa no Ultramar, era mais reduzido que em Portugal Continental. E para mim, o serviço militar era coisa para acabar o mais depressa possível.

Um mestre em s. Benedito

Beira foi a cidade de acolhimento do novel pára-quedista. Fervilhava, então, o futebol no campo de S. Benedito, na Manga…

De regresso, colocado na Beira, tive de imediato um convite para jogar no Sporting local, clube que tinha excelentes jogadores e que me possibilitaria vir a jogar no então Campeonato Provincial, deslocando-me a Lourenço Marques, onde vivia a minha família e a maior parte dos meus amigos. Mas, uma vez convidado a viver uma tarde de futebol no campo da Manga, logo me decidi por lá actuar. Aquilo era o máximo. Integrei-me no Sporting Zambeziano e vivi tardes de glória que me fi caram gravadas. Chamavam- me o mestre, pela forma como eu fazia a distribuição do jogo. Recordo-me do Filipe, na altura com 12/13 anos, que era meu admirador, sentimento que depois se inverteu, quando ele chegou ao auge da carreira, tendo defendido por várias vezes a baliza da Selecção Nacional.

Terminada a missão militar, o regresso a Lourenço Marques, mas sempre a preterir as grandes equipas. Porquê?

Não sei bem porquê, mas de uma forma geral, sempre tive propensão para jogar em equipas sem gabarito. É o caso do Nacional Africano, que abracei por uma questão nacionalista. Tornei-me um dos principais entusiastas, “resistindo” a convites dos grandes clubes. Mais tarde, o Nova Aliança — também dos subúrbios — numa altura em que constituímos a mais forte equipa de sempre daquele clube, ao lado de Gil, Mesquita, Humberto Matsolo, Mandoviana e outros. Seguiu-se o Benfi ca (hoje Costa do Sol), sob as ordens de Martinho de Almeida, já próximo da Independência Nacional. Mas no pensamento ainda pairava um eventual regresso no futebol português, para tentar a sorte no Benfica.

Mas tudo o 25 de Abril levou…

De alguma maneira, isso é verdade. Com a Revolução dos Cravos e pouco depois a declaração da nossa Independência, o desejo de ver a subir ao mastro a bandeira de Moçambique e a contribuição que pensava dar ao país, fi zeram-me desistir dos planos de um dia vir a ser companheiro de Eusébio. O futebol começou aos poucos a passar para um plano mais recreativo, vieram os estudos nocturnos e cá estou eu, noutra área, mas sem nunca deixar de dar uma perninha, aos fi ns-de-semana, com os amigos.

Como o juiz vê o futebolista?

Tinha boa leitura de jogo!

Como define as suas características, enquanto futebolista?

Penso que o meu ponto forte era a leitura de jogo. Jogava preferencialmente no meio-campo, privilegiando as tabelinhas, para depois servir os jogadores da frente. Sempre fui fi sicamente robusto, mas o que acho espantoso foi o crescimento que tive, numa certa altura da minha vida. De txote que era, de repente vi-me com uma altura razoável e que me permitia disputar as bolas pelo ar. Penso que tinha bom jogo de pés e domínio de bola, marcando muitos golos a partir de pontapés à meia-distância.

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