Ka Tembe é um resumo do país. Aqui, tal como noutros cantos de Moçambique, o desenvolvimento é eternamente adiado e tudo é um pouco mais caro, com excepção do que sai do mar. A ausência de uma ponte faz toda a diferença…
Quando o dia começa, a lufa-lufa de estudantes, trabalhadores e vendedores ganha espaço do outro lado da margem. Logo de manhã, a movimentação de pessoas é maior no sentido Ka Tembe – Maputo. Ao entardecer, o fluxo é no sentido contrário.
Debaixo de uma árvore, um bando de mulheres, de diferentes idades, sobressai aos olhos vendendo mariscos por detrás de bancas improvisadas. Com as atenções viradas para a angariação de clientes, gritam incansável e sucessivamente. Os transeuntes não resistem ao chamamento.
Ivone Marcolino,de 24 anos de idade – três dos quais dedicado à venda de peixes, caranguejo e camarão – enveredou por este negócio pouco depois de não ter conseguido dar continuidade aos seus estudos.
“Concluí a sétima classe em 2007, e os meus pais não tinham condições para me inscreverem no ensino secundário”, conta. E, porque as condições da vida defi nhavam, optou por arranjar um negócio.
A venda de peixe “magumba” é o lado mais visível. Os dias de maior procura de mariscos são os fins-de-semana, sobretudo os sábados, devido ao grande númerode pessoas que acorre à praia daquele distrito municipal para lazer.
“Quando chega o fim-de-semana,adquiroduas caixas de peixe, por 400 meticais cada. Por caixa, tenho uma margem de lucro no valor de 200 meticais. O negócio é mais rentável quando vendo a retalho”, diz Ivone.
Muito peixe, pouca venda
O custo de peixe ronda dos 20 aos 50 meticais por molho. Quando há muito peixe nas bancas, o ritmo do negócio abranda, forçando à redução de preço (10 e 15 meticais). Às vezes, não se consegue vender nada. “Hoje, ainda não vendi quase nada. Comprei muito peixe e corro o risco de ter muitas quebras, pois não tenho condições para conservar. Espero que no final do dia a situação melhore”, afirma.
Viver da pesca
Há 12 anos, Felismina Matlombe,de 29 anos de idade, dedica-se ao negócio de venda de marisco na ponte da Ka Tembe. De 1999 a 2003, vendia apenas peixe “magumba”. Graças à actividade, “sustentei a minha família, custeei as despesas escolares dos meus filhos, construí e mobilei a minha casa”.
Em 2009, Felismina fez um projecto para ter acesso ao Fundo de Investimento e Iniciativas Locais, vulgo “Sete milhões”. Solicitou 50 mil meticais para investir no negócio, tendo adquirido um barco. A embarcação feita de material precário custou 40 mil meticais. “A administração disponibilizou-me o valor em Janeiro de 2010 e, no mesmo ano, adquiri um barco com 6 metros de cumprimento e 1.5 de largura”.
Antes de adquirir a embarcação, Felismina tinha de “guevar” (comprar a grosso) os mariscos. Agora, a situação é diferente, pois tem dois trabalhadores. “Os meus pescadores diariamente vão ao mar, entram às 5h00 e regressam às 14 ou 15h00, dependendo do tempo que se faça sentir no alto mar”, diz.
No primeiro trimestre deste ano, reembolsou o valor de 50 mil meticais emprestados no âmbito dos “Sete milhões”. Mas, “terei de solicitar pouco menos de 40 mil, pois pretendo comprar um motor para montar no meu barco. O actual é manual e lento”, afirma.
Felismina emprega osdois pescadores desde o princípio do ano em curso. Eles ganham metade do que conseguem pescar no mar, ou seja, a remuneração é mediante a produtividade e depende do acordo firmado entre a proprietária da embarcação e os pescadores.
Ao contrário dos trabalhadores de Felismina, os de Maria Muchaco, vendedeira de mariscos há sensivelmente 23 anos e proprietária de uma embarcação, recebem em numerário. “Quando eles conseguem duas caixas de mariscos, vendo e dividimos a receita”, conta.
Os pescadores e o perigo iminente
As pequenas embarcações de pesca que operam na Ka Tembe levam a bordo dois pescadores – um do lado do direito e outro no lado oposto –, ambos remando no sentido inverso ao das ondas. São estes homens maioritariamente constituídos por indivíduos com idade compreendida entre os 35 e 50 anos que garantem o negócio de mariscos ao longo das margens.
João Panguene, de 48 anos de idade, é pescador desde 1995. Começou a desenvolver a actividade pesqueira pouco depois de perder o emprego numa das estâncias turísticas da Ka Tembe.
“Estava cada vez mais difícil encontrar um outro emprego, entretanto pedi ajuda aos amigos pescadores que se prontifi caram a ensinar-me a pescar. Foram três meses de treino, agora sou um mestre e instrutor. Remar contra a maré é o meu pão de cada dia”, conta.
Sem embarcação própria, Panguene ganha a vida trabalhando com barcos alheios. A remuneração é baixa, embora não deixe de garantir o sustento diário da sua família. Recebe metade do produto que obtém diariamente. “Por vezes, arrisco a minha vida por uma ínfima quantidade de peixe”.
A sorte dos pescadores
Mateus Mate é pescador desde 1990 e conta que, nos últimos anos, se tem verifi cado casos em que alguns pescadores vão ao mar e nunca regressam à terra fi rme. No ano passado, desapareceram dois pescadores, os seus restos mortais não foram encontrados, e a dona da embarcação nunca se pronunciou.
Quanto custa a “magumba”?
O peixe “magumba” é vendido a retalho. Os preços de cada monte variam entre os 20 e 50 meticais. Engana-se quem pensar que os pescadores vendem-nos a baixo preço relativamente aos que vão “guevar” nos barcos atracados por entre as margens do mar.
“O preço é o mesmo para todos, independentemente da sua aquisição. A uniformização dos preços permite uma concorrência leal entre nós, as vendedeiras”, garante Felismina Muchaco.
Falta de transporte
Alexandre Tandane, de 25 anos de idade, é nativo do distrito municipal Ka Tembe e, como tantos outros moradores, queixa-se da falta de transporte público e chapas. Os poucos transportes semicolectivos que circulam pelo distrito recolhem muito cedo.
“A partir das 19 horas, os chapas não circulam alegadamente por falta de iluminação e o elevado estado de degradação das estradas”, comenta.
Os moradores dos bairros de Chali ou Guachene que estudam no período nocturno na cidade de Maputo estão literalmente proibidos de chegar à casa, a não ser que percorram quilómetros a fio a pé.
Alfredo Mondlane vive em Chali e frequenta a Faculdade de Engenharia da Universidade Eduardo Mondlane no período pós-laboral. Normalmente, as suas aulas terminam por volta das 22h00 e tem de chegar a tempo e horas no cais de Maputo para apanhar o ferry boat.
Chega a Ka Tembe poucos antes da meia-noite. Mas o seu grande dilema é chegar à casa. “De segunda a sexta, durmo em casa de um colega na zona do mercado situado em frente à ponte”, diz.
À semelhança de Alfredo, existem tantos outros que não podem chegar à casa por falta de transporte. Na Ka Tembe, sobretudo na zona da ponte (no mercado) até o interior, a criminalidade quase que não existe. O movimento que caracteriza o mercado é sempre intenso.
Nos fins-de-semana, a tendência revela-se cada vez mais crescente. Há gente que, oriunda dos vários cantos da província e cidade de Maputo, acorre àquele local para momentos de lazer, além de tantos outros residentes nos bairros circunvizinhos que fazem daquele lugar um ponto preferencial de encontro.
Cimento mais caro
Nos estaleiros de venda de material de construção, o valor de cimento e blocos é ligeiramente alto, se comparado com o preço praticado em alguns locais da província e cidade de Maputo. Nos recintos por nós visitados, há uma uniformização no preço. Um saco de cimento custa 300 meticais, o bloco de tamanho 10 é comercializado a 16 meticais e o de 15 a 19.
José Reis, proprietário de um estaleiro situado a 100 metros do mercado, diz que, porque não tem cotas atribuídas na fábrica de cimentos, compra o cimento a grosso num dos grandes armazéns da cidade de Maputo ao preço de 280 meticais e os 20 que acrescenta é devido ao custo de transporte tanto rodoviário como marítimo.
Os moradores mostram-se tranquilos com os preços de produtos alimentares, e não só, praticados no distrito da Ka Tembe. “Temos que reconhecer que o custo de transporte é o principal factor que contribui para a ligeira subida de preços. Nós compramos o cimento, blocos e produtos alimentares ao preço praticado sem nenhum problema”, diz Fabião Ngomane.
O distrito da Ka Tembe
Para quem está no coração da cidade de Maputo e lança o olhar para o outro lado da baía, vislumbra uma paisagem verde e virgem, ou por outra, não explorada.
Neste ponto de vista, Ka Tembe parece uma ilhota isolada e solitária, porém, dados estatísticos do censo de 2007 revelam que este distrito municipal alberga 20629 (vinte mil, seiscentos e vinte e nove) habitantes.
E desde essa altura até o presente, acredita-se que a população cresceu muito, ainda que esteja aquém de cobrir os 174 quilómetros quadrados da sua extensão territorial. Ainda assim, o número de pessoas que procura pelos serviços de transporte entre Maputo e Ka Tembe revela que o distrito cresceu.
Ka Tembe está na lista dos sete distritos que compõem o município de Maputo e conta com cinco bairros, nomeadamente Guachene, Chali, Incansani (mais conhecido por Marinha), Inguide e Chamissava. Tal como o resto da cidade de Maputo, o distrito debate-se com problemas de falta de transporte, e os ligados à educação e à saúde.
Educação
O distrito municipal de Ka Tembe conta com 11 escolas, das quais quatro são do EP1, cinco do EP2, uma do ensino secundário do primeiro ciclo, uma do ensino secundário do segundo ciclo, mas até esta altura não está a leccionar a 12a classe, o que, segundo Manuel Nhone, cria problemas à massa académica, visto que quando se conclui a 11aclasse tem de se recorrer a algumas escolas do outro lado da baía, preferencialmente, as escolas secundárias, Francisco Manyanga, Josina Machel e, em alguns casos, encontram solução no ensino privado.
Dado curioso reside no facto de, nos últimos dias, se assistir à acorrência massiva de meninas que procuram pela escola, o que não acontecia antes. Conta-se que há anos, as raparigas engrossavam o número de desistentes, alegadamente porque preferiam emigrar para a África do Sul.
Saúde
Com uma rede sanitária constituída por um centro de saúde e dois postos, o distrito de Ka Tembe clama agora por um hospital.
O centro de saúde dispõe de uma ambulância, que tem feito o transporte de pessoas gravemente doentes, ou que precisam de cuidados intensivos para os hospitais do centro da cidade de Maputo, nomeadamente o HCM e o Hospital Geral José Macamo.
Dentre as várias doenças que enfermam os residentes da Ka Tembe, destaca-se a malária e, em alguns casos, a cólera, que ocorre sazonalmente. Fala-se também da SIDA, como uma doença que tem afectado parte significativa dos moradores.
Transporte
O transporte na Ka Tembe é um caos. O acesso aos bairros do distrito é quase impossível, como são os casos de Inguide e Chamissava. Há poucos meses, o distrito contava com um carro da empresa TPM. Porém, sem dar nenhuma satisfação, a empresa retirou o autocarro das estradas, deixando sem meios os que dependiam dele.
Água e Luz
O sistema de abastecimento de água na Ka Tembe é totalmente deficitário, segundo o engenheiro Manuel Nhone. A cobertura está estimada em 50 porcento.
O sistema de abastecimento é assegurado pela empresa Águas de Moçambique (AdM), através de furos, datados dos anos ´60. “Estes furos foram concebidos há 40 anos, para um restrito grupo de pessoas, mas a população aumentou e o sistema já não aguenta coma demanda”.
O sistema de distribuição da AdM só abastece os bairros de Guachene e Chali, os outros são alimentados pelos privados, que foram impulsionados pelo fundo de “Sete milhões”.
Recentemente, o governo local desencadeou a construção de um sistema de reserva, com capacidade para 100 mil metros cúbicos contrariamente aos 5 mil ora existentes. Estima-se que esta capacidade de reserva poderá superar a de consumo da população, tendo em conta o número de residentes.
Quanto à rede eléctrica, os bairros Guachene e Chali, segundo Nhone, estão totalmente cobertos, contrariamente aos restantes que enfrentam problemas sérios, devido à dispersão na localização das casas.