Aproximadamente uma centena de famílias vive o drama de ter sido forçada a abandonar o abrigo das suas casas para dar lugar às obras de ampliação do cemitério de Lhanguene. Porém, para quem se recusou a deixar o sossego do seu lar, o sofrimento é outro: a perturbadora convivência com os mortos – que o diga o morador Joaquim Chilengue.
O que já era difícil no dia-a-dia de Joaquim Chilengue, de 48 anos de idade, agora piorou. Quase todos os dias, o funcionário em reserva do Ministério da Defesa acorda ao som dos cânticos fúnebres. Há pouco mais de seis meses, os enterros que se realizam no cemitério de Lhanguene, bem ao lado da sua residência, no bairro Luís Cabral.
O drama começa quando o Concelho Municipal da Cidade de Maputo decide alargar o cemitério. Em princípio, esperava-se que 2500 famílias fossem abrangidas pelo processo, porém, devido à falta de fundos para a materialização do projecto de retirada das pessoas, o município deu prioridade ao que viviam paredes-meias com sepulcrário.
Em Junho de 2009, pouco menos de 100 famílias vivendo nos quarteirões 22 e 23 foram movidas para o bairro de Magoanine “C”. Para cada agregado familiar, decretou-se uma indemnização em função da moradia que possuía.
As famílias abrangidas pelo processo queixam-se das compensações, consideram injustas, uma vez que não foram atribuídas com base em princípios claros. Há quem com uma casa de tipo dois recebeu um valor superior ao de quem tinha uma casa maior e com melhores condições.
“Fomos pressionados a assinar”
As famílias que em 2009 aceitaram abandonar as suas residências, hoje afirmam que o processo foi radical, visto que foram forçados pelos agentes do município a assinar o documento.
“Trouxeram-nos um compromisso de honra e nos obrigaram a assinar no mesmo dia”, conta um dos abrangidos, acrescentando que “quem tentasse ler o documento era prontamente ameaçado de perder os seus direitos”.
Segundo o morador que não quis ser identifi cado por temer represálias, as famílias assinaram com receio de perder o pouco dinheiro que lhes tinha sido prometido.
No referido “compromisso de honra”, os populares assumiam por via das suas assinaturas que estavam satisfeitos com as compensações, e comprometiam-se a cumprir com as condições que o Conselho Municipal colocasse, desde a atribuição de terrenos com medições não muito comuns no plano urbano de Maputo, 12,50 por 25 metros, contra o famigerado 15 por 30m.
Chilengue, “o mau da fita”
Apesar de várias ameaças, Joaquim Chilengue foi o único que se recusou a assinar a declaração do compromisso de honra. “O que nela vinha contido não correspondia aos meus anseios e a verdadeira forma de atribuição de compensações ou indemnizações”, conta.
Mais do que uma simples declaração de compromisso de honra, havia o pior documento: a ficha de confirmação do levantamento”.
Os populares foram obrigados a assumir que receberam o valor, mesmo antes de tê-lo em mãos. Mais uma vez, a história de ameaças repetiu-se: “Ou assina ou perde para sempre”.
Como sempre, Joaquim Chilengue, “o mau da fita”, não aceitou assinar o documento. Numa primeira fase, pediu algum tempo para analisar o seu conteúdo, mas a equipa do município não deixou, alegadamente porque não havia tempo para isso. “Alguma coisa estava estranha porque a atitude dos agentes do município violava o direito do cidadão”, afirma.
Ponto da discórdia
Chilengue é proprietário de uma casa de tipo 2, no bairro Luís Cabral. Aquando da retirada das famílias para o alargamento do cemitério de Lhanguene, nos cálculos do município, a moradia que ocupa uma área de 50 metros quadrados, rebocada e com cobertura de zinco, seria compensada em 114.446,50Mt.
Para Joaquim Chilengue, o valor ignorava os custos da construção da sua habitação, desde o tipo de material usado até as partes anexas, como é o caso da cozinha e a casa de banho. Insatisfeito com a situação, Chilengue decidiu recorrer da decisão.
Foi neste âmbito que, mediante uma reclamação por si colocada ao Gabinete de Estudos e Projectos do Município de Maputo, o seu valor foi incrementado em mais 6 mil meticais, para compensar o seu muro de vedação, que ocupa 11 metros quadrados. Nisto, o valor de Chilengue passou a ser 120.446,50Mt (cento e vinte mil e quatrocentos e quarenta e seis mil meticais e cinquenta centavos).
Mesmo assim, a insatisfação de Chilengue perdurava, afinal havia ainda muita coisa que não estava contemplada na valoração, com destaque para a sua casa de banho. No entanto, voltou a recorrer da decisão do Conselho Municipal de Maputo.
Mais uma vez, o município reconheceu as suas falhas e decidiu aumentar nos 120.446,50 meticais, um valor de 7.764 Mt (sete mil e setecentos e sessenta e quatro meticais) que cobriria as despesas da fossa. Findo o processo, Chilengue contava com um valor de 128.210,00Mt (cento e vinte e oito mil meticais e duzentos e dez meticais).
A questão de Joaquim não ficava por aqui resolvida, porque, segundo ele, o município não tinha dado atenção ao tipo de construção que tinha feito.
A casa de Chilengue tem uma fundação feita com blocos de 20 centímetros, as suas paredes principais, com blocos de 15 centímetros e as divisões com os blocos de 10. Joaquim conta que quando construiu a sua residência não chegou a pensar que pudesse desfazer-se dela. “Esta casa, para mim, era o princípio e o fim, por isso que investi tudo nela”, diz.
Simango faz ouvidos de mercador
Na senda da sua insatisfação, Chilengue decidiu emitir uma carta ao conselho Municipal pedindo audiência com o edil da capital. O pedido foi feito a 28 de Maio de 2009. Entretanto, volvidos dois anos, o pedido ainda não foi diferido.
A necessidade de dialogar directamente com o edil de Maputo surgiu apôs a falta de consenso que houve nas conversas entabuladas com o então vereador do distrito municipal de Ka-Mubukwane e o com o director adjunto do departamento de Estudos e Projectos, Lourenço Massango e Paulino Pires, respectivamente.
Chilengue considera que o facto de o edil estar confinado no seu gabinete, propicia o mau funcionamento dos projectos da cidade. “ O edil não pode ser alguém que fica no gabinete a receber relatórios enganadores”, comenta.
Tentamos saber na secretaria do Município de Maputo o encaminhamento que se tinha dado ao pedido de audiência do senhor Chilengue. Algo que nenhum dos funcionários soube responder.
“Esse senhor é mau”
Pessoas ligadas ao conselho municipal consideram que a imagem do senhor Chilengue é reconhecida ao nível da sua instituição, pelo nível de persistência que ele tem, quando luta pelos seus direitos.
Mais do que a sua persistência, está a justiça que fez, ao ponto de ter provocado a queda de algumas pessoas que estavam ligadas ao reassentamento da população do cemitério de Lhanguene.
Um interlocutor ligado à edilidade disse que muitos funcionários seniores do Conselho Municipal perderam os seus postos, como resultado dos desmandos havidos no processo de retirada das famílias para o alargamento do cemitério de Lhanguene. A fonte escusou-se a avançar nomes de algumas pessoas que foram atingidas pelas incursões de Chilengue.
Viver lado a lado com os mortos
Tendo dado todos os passos com vista a proporcionar bem-estar aos seus filhos, dentro dos direito que tem, o da habitação, o Conselho Municipal decidiu ignorar os anseios do Chilengue, confi nando-o no cantinho dos mortos.
Chilengue está cercado de túmulos, que a cada dia ocupam os antigos terrenos dos seus ex-vizinhos que não tentaram ser persistentes como ele.
Há pouco menos de 10 metros da sua casa, a administração do cemitério autorizou a abertura de covas para a realização de funerais. “Dia após dia, as campas estão cada vez mais perto da minha casa”, conta amargurado Chilengue.
Nem com isso pensa em sair do local sem merecer a sua devida compensação, porque acredita que tudo o que faz, está dentro da sua razão. “Estou certo que a justiça pode tardar, mas não vai falhar”.
Outras vítimas
Joaquim Chilengue não foi a única vítima dos desmandos da edilidade. Há pouco menos de cinco metros da sua casa, está uma outra família que não tendo ficado satisfeito com o valor da compensação pautou por ficar ali, vivendo lado a lado com as campas.
Algumas pessoas que foram abrangidas pelo processo em 2009, até hoje se ressentem do desfalque de que foram vítimas. Joaquim Sendela, de 80 anos de idade, conta que tinha uma casa com duas divisões, feita de caniço e recebeu como compensação um valor de 10.000, 00Mt (Dez mil meticais).
E acrescenta que, ao ouvir falar deste valor, pensou que fosse muito, mas quando chegou em suas mãos, apenas foi sufi ciente para comprar dez sacos de cimento, com os quais fez quinhentos blocos e o resto comprou uma porta de madeira. “Voltei a penúria”, conta amargurado, o velho.
“Essa casa vale mais que 128 mil meticais”
Para o chefe do departamento da arquitectura da Universidade Eduardo Mondlane, João Tique, a casa de Chilengue pode valer mais do que aquilo que o município pretende dar. Entretanto, há muitos factores que jogam para a atribuição de valores.
Alguns jogam a favor e outros contra. Tique é da opinião que quando se faz a avaliação da casa não só se deve ter em conta o material gasto, no entanto que cimento, chapas, barrotes e esquadria.
“Há muitos outros factores que jogam no processo de construção de uma casa, um deles é o pagamento do mestre da obra, assim como o transporte do próprio material”, diz.
Tique acrescenta que “quando se trata de construção de espaços de utilidade pública, o Estado tem sempre alguma vantagem. “A lógica é que não se pode parar um projecto que benefi cie muita gente por causa de uma pessoa”.
Entretanto, a questão do bem público não se deve sobrepor aos direitos individuais do cidadão. “Nem com, isso não se pode violar os direitos individuais do cidadão em nome do bem público”, finalizou.
A ideia de que a casa de Chilengue pode valer mais, é sustentada pelo estudante do 4o ano do curso de arquitectura, Pedro Matos, que segundo ele, a avaliar pelo espaço que ocupa (50 m2) e o material usado, esta poderia custar 350 mil meticais.
Convivência com os mortos pode trazer problemas mentais
Na busca da justiça, Joaquim Chilengue tornou-se vizinho dos mortos, e para o Psicólogo e Psicoterapeuta da UEM, Elias Sande, a convivência que Joaquim e a sua família têm com os mortos pode criar no seio da sua família comportamentos anormais.
“Os filhos do visado, assim como ele, podem desenvolver insensatez pela morte, ou pelos mortos devido ao convívio que tem diariamente com esta situação”.
Além de traumas mentais, existe factores sociais resultantes do fraco relacionamento com os outros semelhantes. “A auto-estima da pessoa baixa e consequentemente tem dificuldades de conviver com outros semelhantes”. Sande alerta que a manifestação destas sequelas mentais não é imediata, ou por outra, pode levar dois a três anos para se evidenciar.
Para terminar, Sande considera que os problemas psicológicos que emanam desta convivência podem-se estender ao físico, criando anomalias físicas, assim como comportamentos desviantes.