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A ntyiso wa wansatititi – Artista de Circo

A vida são portas condenadas. Portas que passamos, pensando que, ao as abrirmos, vamos descobrindo o mundo e arrumando o caos interno, mas afinal percebemos que à medida que os anos passam, elas se vão fechando uma a uma, nas nossas costas ou na nossa cara, batendo com uma veemência esmagadora que nos deixa de braços estendidos ao longo do corpo e a perguntar em surdina porquê.

A vida são portas condenadas, primeiro fecha-se a porta da infância, dos bolinhos de lama para o lanche das bonecas, tiram-nos as rodinhas das bicicletas e dizem-nos és capaz, tu já és capaz. a partir daí a vida estreita-se num arame cada vez mais fino e ténue e é então que vamos percebendo que viver não é mais do que um precário equilíbrio, uma travessia solitária pelo arame traiçoeiro que nos há-de levar a qualquer lado que é sempre do outro lado, onde está tudo aquilo que nos convencem que queremos ou que simplesmente escolhemos como objectivos para alcançar uma coisa qualquer a que gostamos de chamar tranquilidade.

Deve ser por isso que sempre quis ser artista de circo, a travessia diária do arame dá-me medo e vertigem, o medo paralisa- me mas a vertigem chama-me e lá vou eu, um pé à frente do outro, a vara com a razão numa ponta e o coração noutra a atravessar a vida, sempre à espera que uma corrente de ar entre um e outro lado da tenda me façam parar para pensar. Ou então, porque não sei viver sem olhar par as estrelas, procurando nas alturas sonhos que se fecharam atrás de portas condenadas, imagino que sou um trapezista com o cabelo cor de fogo e um maillot dourado bordado a lantejoulas e que cruzo o tecto do mundo em acrobacias da mais fina elegância, lançando-me no espaço com a mesma inconsciência com que corria no fio do muro do colégio ou empilhava cadeiras e mesas todas uma por cima das outras no ginásio deserto até sentir que via o mundo de cima, pequeno e distante.

As minhas pernas são musculadas, seguram-me na barra suspensa e dão o balanço certo antes do voo, o cabelo cor de fogo ondula ao ritmo da minha vertigem enquanto me balanço lânguida para a frente e para trás, preparando o momento exacto para executar o salto perfeito sem nunca olhar para baixo, porque a vida nunca me diz se tenho ou não rede para cair.

E no instante perfeito em que te vejo do outro lado das alturas a piscar-me o olho e a chamar-me gorda má. Com aquele meio sorriso irónico que tão bem conheço – nunca fui gorda nem soube ser má – e um braço estendido enquanto o outro se agarra à corda, fecho os olhos e salto pelo ar, atravesso o tecto da tenda, lá em baixo as avós rezam e as crianças abrem a boca de espanto, e nunca sei se me agarras no último instante possível e me convences de que afinal a vida não é só portas condenadas que o tempo também serve para abrir, ou se me deixas cair devagar, como fazemos com aqueles que amamos com medo de não ter nada para lhes dar.

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