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A magia do dramaturgista

A magia do dramaturgista

Há uma crença de que a encenação de obras de autores moçambicanos como, por exemplo, Mia Couto, Paulina Chiziane e Eduardo White, tem contribuído para que a literatura chegue a quem nunca teve a oportunidade de ler os livros. O que não se sabe é até que ponto o exercício do dramaturgista desperta nos jovens a necessidade de investirem na leitura. Estimado leitor, descubra, a seguir, outros aspectos envolvidos na dramatização de romances.

O actor e encenador moçambicano, Elliot Alex, um dos mais experimentados na dramatização de romances – encenou A Varanda do Frangipani, Terra Sonâmbula, O Último Voo do Flamingo, todos de Mia Couto, e, muito recentemente, Niketche, de Paulina Chiziane – classifica essa experiência como o resultado de inúmeras leituras em torno da mesma obra literária.

O primeiro livro que dramatizou, em 1996, foi A Varanda do Frangipani. Depois seguiram-se os demais: “Sempre que eu lia aquela obra vinham-me imagens na mente. Como diz o Mia Couto, os seus fantasmas ressuscitavam em mim. Porque não pô-los em vida?”, intrigava-se, ao mesmo tempo que reconhece a desafiante missão de encenar as obras de um romancista que, em apenas um livro, narra duas ou mais histórias paralelas.

Os riscos que se correm são claros – a exclusão de muita informação preciosa. Por isso, muitas vezes, “tive de definir a história que queria contar. Em Terra Sonâmbula, eu tinha a vontade de narrar as peripécias de Muidinga, o miúdo que estava na companhia de um senhor, a quem chamava pai, embora fosse filho adoptivo. O livro tem muitas narrativas. Só que a história deste personagem, que precisava de reencontrar a mãe, estava relacionada com a do Quinzo, o jovem que abandonou a sua terra à procura dos naparamas a fim de que se alcançasse o cessar-fogo. No entanto, nalgum momento, este rapaz conhece Farida por quem se apaixona. E por causa disso, a pedido da sua namorada, tinha que procurar o seu filho perdido, o Muidinga”.

Como adaptar um romance rico em termos de histórias para a realidade teatral, tendo em conta as limitações que – sob o ponto de vista de duração da peça – o tempo impõe, incluindo o envolvimento do dramaturgista nesse enredo? “É muito difícil. É uma prática que implica encontrar soluções técnicas adequadas. De qualquer modo, porque são belas, as histórias dão-nos o gozo do querer e não poder incluir todas as peripécias na peça”, afirma Elliot Alex realçando que “seleccionei as histórias que quero contar, excluindo, por vezes, alguns capítulos, sem perder a sequência do romance”.

Gestão de expectativas

A adaptação de um romance para o teatro instaura uma relação triangular entre o autor do livro, o encenador da peça teatral e as pessoas que leram a obra e que irão vê-la numa situação cénica. Invariavelmente, estes últimos vêem a peça com a expectativa de estabelecer alguma relação entre o que absorveram, através da leitura, e o que agora absorvem em cena. Como é que se faz essa gestão de expectativas?

Comentando esta questão, Elliot Alex começa por afirmar que “há sempre uma expectativa da parte de todos os públicos envolvidos na peça. No entanto, tendo em conta que um dramaturgista, um escritor e um encenador são artistas, todos têm a liberdade de criar. Há encenadores ou dramaturgistas, pessoas como eu, que querem ser fiéis ao romance. Mas também, baseando-se no mesmo livro, podem criar uma história completamente diferente da inicial. Ou montá-la de uma outra forma, a fim de que as pessoas digam: ‘essa cena eu conheço, porém, é distinta’. A isto chamo soluções técnicas. Não é possível que se retrate, em teatro, tal e qual a história do livro. Além do mais, nós sabemos que o teatro é uma forma de interpretar a realidade que pode ser muito simbólica”.

A actriz e encenadora moçambicana, Lucrécia Paco, afirma que estamos diante do horizonte de expectativas, princípio a partir do qual se compreende que cada leitor é livre de fazer as suas interpretações: “As imagens que o Elliot vê em Niketche fazem-no ter opções técnicas diferentes das minhas. Por exemplo, ele falou do espelho que é algo que existe no livro. No entanto, na minha versão da mesma obra, em nenhum momento coloco a Rami a dialogar com o referido objecto. Trabalho com as vozes presentes que representam as vizinhas. Uma das conselheiras – e naquele tempo as pessoas questionaram-me se eu ia utilizar um travesti – era uma homossexual”.

A actriz assume que “quem escreve é um criador, mas nós também, os encenadores, quando encenamos a história, recriamos. Podemos não chegar à expectativa global das pessoas. Mas, com a nossa obra teatral, manifestamos um olhar peculiar sobre aquilo que um determinado livro desperta em nós”. É por essa razão que “sugiro que cada vez mais jovens se empenhem na leitura, a fim de perceberem o que é que determinado texto desperta neles. Eles não se devem limitar a compreender unicamente aquilo que o autor deseja transmitir, porque o acto da escrita é uma ‘viagem’. Quando escrevemos nem sempre esperamos transmitir uma ideia concreta”.

Quem lê

Coloca-se a questão: será que a encenação e/ou a dramatização de romances – com enfoque para os de autores moçambicanos – tem instigado as pessoas à leitura? Elliot Alex comenta o tópico nos seguintes termos: “A nossa juventude, a ‘geração à rasca’, praticamente, não lê. Por exemplo, os jovens com quem trabalhei na montagem da peça baseada no livro Terra Sonâmbula não tinham lido o livro antes dessa experiência”.

“O mesmo aconteceu quando montámos o Niketche. A menina que interpretou a personagem Rami não tinha lido o livro antes. Aconselhei-a a absorvê-lo porque ela era a protagonista. E a obra, em si, contém muitos dados que o encenador não conseguiria transmitir ao actor. Felizmente, Arlete empenhou-se na leitura. Entretanto, não posso dizer o mesmo em relação aos outros que só procuraram o manual depois da estreia da peça”.

De todos os modos, como refere Lucrécia Paco, é inquestionável que, com a dramatização de romances – e talvez seja esta uma das magias da dramatização –, “o teatro tem a capacidade de atrair as pessoas para ver, em cena, e ler as histórias encenadas, mesmo para que, no fim, se confrontem as ideias sobre até que ponto a peça, inspirada numa determinada obra, consegue responder ao conteúdo do livro”.

A leitura tem outro mérito pouco conhecido entre nós: “É uma forma de despertar o gosto das pessoas pela leitura, bem como para o surgimento de novos dramaturgos, condição indispensável para que possamos sair do ciclo de improvisação em que nos encontramos”, refere Lucrécia.

 

 

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