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A dor de ser coveiro

A dor de ser coveiro

Um coveiro aufere, no máximo, 3000 meticais e abre uma média de quatro covas por dia. Trabalha mais de oito horas e usa o mesmo fardamento durante dois anos (730 dias). Pás e cordas, essenciais para a actividade, são bens que também rareiam. É uma profissão dura que a sociedade não compreende e o Estado não assiste…

Tem uma expressão vincada e pertence à primeira geração de coveiros do pós-independência, um grupo de moçambicanos sem escolaridade que não teve outra opção a não ser trabalhar dentro dos limites do cemitério.

Houve muitos que desistiram pelo caminho, sem estômago para a função, pelo salário de miséria, não se importando de ficar sem fazer nada. Felisberto Manhiça, de 53 anos de idade, tinha 19 quando chegou pobre e sem futuro ao emprego no Cemitério de Lhanguene, em 1979. Mas hoje, volvidos 32 anos, continua a ser um cidadão pobre, com emprego, mas sem presente.

Uma biblioteca viva

Felisberto pode não ser uma voz autorizada para falar dos números ofi ciais ou do orçamento que cabe ao cemitério. No entanto, ninguém mais do que ele pode falar dos dramas e do dia-a-dia dos funcionários da última morada.

Até porque as diferenças são gritantes. Se no passado os instrumentos de trabalho abundavam e existia mais espaço no Lhanguene, hoje há menos terra, mais trabalho e poucos instrumentos para a função.

“Antigamente recebíamos novos fardamentos em cada seis meses. Mas, de há algum tempo a esta parte, o cenário é outro, a troca é feita de dois em dois anos”.

Mais: “o fardamento que usamos para fazer os enterros de pessoas singulares é o mesmo que voltamos a vestir para o descarregamento de corpos na vala comum”. No entanto, “em condições normais devíamos mudar de fardamento o que não acontece antes que passem 730 dias”.

Há ainda outros dramas: uma conjugação de factores que num ápice reduzem as margens de manobra destes, nomeadamente o número de covas que um funcionário tem de fazer devido ao crescimento invulgar de agências funerárias no país; os crónicos problemas de transporte da cidade de Maputo; a falta de pás e cordas.

Ou seja, são muitos e variados os entraves, indetectáveis à primeira vista. Mas em boa verdade são todos facilmente contornáveis se forem tidos em conta. Por exemplo, “antes um coveiro fazia duas covas por dia, mas hoje é impossível abrir menos do que quatro”. A culpa, no entender de Manhiça, é das agências funerárias que mandam corpos sem ter em conta o efectivo de coveiros.

“Há funerárias que mandam 10, 20 ou 30 corpos diários para um universo de 25 coveiros. Com esse volume nós somos obrigados a redobrar o esforço para fazer as covas em tempo útil.”

Mais: “as agências limitam-se a vir deixar os corpos ao invés de se preocuparem com a disponibilidade dos coveiros, elas não querem saber se somos poucos ou não, assim não dá, é preciso que valorizem também o nosso trabalho, nós trabalhamos como se fôssemos escravos, diariamente voltamos para casa cansados, para no fim do mês recebermos misérias”, desabafa.

Começou a trabalhar e, de certo modo, mudou as regras do funcionamento normal de uma família: “os meus pais estavam desempregados e eu tinha de garantir o sustento dos meus familiares com o que ganhava”. Uma responsabilidade, diga-se, enorme para quem tinha apenas 19 anos. Contudo, “esse peso em cima dos ombros” deu-lhe “forças para suportar as difi culdades do trabalho”.

Manhiça aprendeu o ofício praticando. No início foi duro: “era complicado trabalhar com a dor dos outros”. Porém, “aos poucos meti na cabeça que aquilo não passava do meu ganha-pão. A vida é assim mesmo. Isso é como fabricar caixões ou ser médico. Aprendes a deixar de lado qualquer tipo de sentimento. Até porque na minha casa todos contavam comigo”.

Hoje, orgulha-se de ter exercido essa função com brilho e constituído a sua própria família. “Apesar de receber muito pouco consigo alimentar e mandar os meus filhos à escola”, diz.

Na primeira pessoa explica-se melhor: “Em ‘79, pouco depois da independência nacional, o país passava por momentos difíceis, as famílias, outrora dispersas, precisavam de se estabelecer e não havia emprego para todos. E porque a oferta escasseava e eu não dispunha de instrução formal, submeti ao Concelho Municipal de Maputo uma carta de pedido de emprego.

Volvidos três meses, um despacho exarado nomeou-me para um posto no Cemitério de Lhanguene, na qualidade de coveiro, com um salário de dois contos e cem centavos, dos quais eram subtraídos 50 centavos para o pagamento de impostos. Como na falta do melhor o pior serve, não arredei o pé e venho desempenhando até hoje a actividade de coveiro”.

O salário não ajuda

À beira da reforma, Felisberto Manhiça tem no salário a maior mágoa. Em pouco mais de 30 anos de profissão aufere 3000 meticias, mas isso foi graças ao aumento que benefi ciou recentemente. Antes ganhava 2800 meticais. Contudo, o mais grave é que nos 3000 meticais já vem incorporado o subsídio de risco.

Fernado Nhantumbo

Fernando Nhantumbo começou a desenvolver a actividade de coveiro em 2004. Diferentemente do velho Manhiça, este jovem, com pouco mais de 30 anos de idade, trabalhou dois anos sem remuneração como ajudante de coveiro.

“A direcção do cemitério dava-me um pequeno subsídio que não dava para fazer quase nada a ser apanhar o transporte. Mesmo assim, fui trabalhando para garantir a minha colocação no quadro dos coveiros, o que aconteceu em 2006”, conta para depois acrescentar que antes recebia 2.500 meticais, mas com o aumento salarial aos agentes e funcionários do Estado passou a auferir 2700, um valor que inclui, diga-se, o subsídio de risco.

Este coveiro, pai de 4 filhos e residente em Marracuene, disse que o salário que aufere não passa de uma migalha desajustada do actual custo de vida.

“O vencimento não corresponde ao nosso trabalho, nós trabalhamos com difi culdades e até excedemos o horário normal de oito horas. Antes trabalhávamos em dois turnos, mas pela exiguidade de coveiros, somos obrigados a trabalhar em turno único, ou seja, das 7h30 às 17 horas”, conta para depois ajuntar que mesmo assim o salário não foi aumentado e durante o tempo de descanso, por volta das 11 horas, não tem direito ao almoço.

Segundo nos conta, os preços da refeição praticados por um centro social algures são proibitivos, os pratos partem dos 40 meticais, “este dinheiro para nós é muito porque não recebemos quase nada”.

“…até parece que somos escravos”

Fernando conta ainda que nos dias de pico, nomeadamente sábados e terças-feiras, a pressão é maior, quase que não há tempo para descansar.

“Nesses dias, como por exemplo hoje (dia 9 de Agosto) fi z 4 covas sozinho. Nós estamos distribuídos por grupos, normalmente cada grupo tem quatro elementos, mas devido à falta de coveiros existem grupos com apenas dois elementos e não é fácil trabalharmos nestas condições”, comenta e acrescenta: “pedimos para que a administração do cemitério procure mais coveiros para responder à demanda, trabalhamos sob pressão e recebemos mal, até parece que somos escravos”.

Por seu turno, Henrique Guambe, pai de quatro filhos, e residente no bairro Ndlhavela, Município da Matola, a trabalhar desde 2003 como coveiro, para além do magro salário mensal de 2700 meticais, lamenta o facto de o número de coveiros ser reduzido e não estar à altura de responder eficazmente à demanda.

“Nos dias de pico, somos obrigados a atrasar os funerais de certas famílias, dado que geralmente a hora dos funerais coincide e somos poucos coveiros em serviço”.

Há pastores que demoram nas orações fúnebres

Guambe aponta o dedo aos pastores e padres. “Alguns deles levam mais de uma hora de tempo a fazer orações e, quando é assim, nós somos obrigados a permanecer minutos a fio com a família para no fim das orações metermos o caixão e tapar a cova.”

Aliás, algumas vezes, devido à demora das orações fúnebres, vêem-se na contingência de abandonar temporariamente certas famílias, para fazerem outras covas.

É no meio da procura pelo trabalho dos coveiros que algumas famílias acabam por oferecer algum dinheiro. Porém, “há quem diga que nós cobramos algum dinheiro pelas covas, isso é mentira. O que acontece é que certas famílias dão e nós recebemos, aliás, o nosso salário é tão baixo que nem dá para recusar essas ofertas que geralmente não ultrapassam os 50 meticais”, diz.

O problema de espaço

A realização de funerais no Cemitério de Lhanguene é uma realidade que salta à vista. Porém, o discurso oficial é feito em torno da falta de lugares no local. Para mitigar tal situação, estão a ser usadas as ruas que separam as campas.

@Verdade ouviu o administrador do cemitério de Lhanguene, Alfredo António Faife, o qual sublinhou que a falta de espaço é um bico de obra que o município tem de enfrentar.

Contudo, fez saber que “começou há poucos anos com o processo de retirada de algumas famílias residentes na parte traseira do cemitério”. Com tal medida, diz Faife, “haverá mais espaço para a realização de funerais”.

O destino das famílias é o bairro do Zimpeto e uma parte delas já dispõe de talhões. No que diz respeito às indemnizações, ainda ficou uma parte das famílias por receber os valores acordados.

Alfredo Faife conta ainda que a área actualmente ocupada pelas residências é de cerca de 15 hectares. “Este espaço é enorme, em cada hectare podem ser feitas 250 covas.” Contudo, Faife não parece estar muito seguro quando diz: “se, de facto, as famílias forem retiradas teremos resolvida a questão de espaço.” Mas se isso acontecesse Faife ficaria aliviado. “Somos obrigados a desenrascar espaços que na verdade não existem”, desabafa.

Faife fez saber que os 58 hectares do Cemitério de Lhanguene estão subdivididos em talhões. “Internamente existe uma área de um hectare reservada à inumação de entidades oficiais do Governo, um hectare para os antigos combatentes e desmobilizados de guerra e os restantesdestinados à sociedade civil ou a pessoas singulares”.

Ainda em relação à estrutura interna, o administrador do cemitério disse que existe espaço para a comunidade cristã que regista uma maior afl uência do que as zonas da comunidade maometana, da hindu e a da comunidade persa.

Um cemitério mal localizado

Munícipes entrevistadas pela nossa reportagem reconhecem a importância que o cemitério de Lhanguene tem, mas lamentam o facto de a sua localização não ser boa.

“É verdade que é um lugar acessível, mas pelo facto de estar ao longo da EN1 (Avenida de Moçambique), uma zona com um movimento intenso de viaturas, isso perturba de certa maneira o decurso normal das cerimónias fúnebres, por um lado ouve-se o roncar estrondoso de alguns autocarros, sobretudo camiões de grande tonelagem, por outro as gritarias de cobradores na angariação de passageiros”, comenta Nela Cossa.

Os coveiros serão submetidos a formação

O administrador do cemitério de Lhanguene, disse que durante uma semana a contar de 15 de Agosto corrente, o município de Maputo vai capacitar os coveiros de todos os cemitérios desta urbe.

“Esta capacitação resulta da necessidade de dotar os coveiros de alguns princípios éticos e morais no desempenho dos seus trabalhos. Nós queremos que os coveiros saibam como lidar com as famílias enlutadas, muni-los de princípios de relações públicas para saberem como lidar com o público que acorre àquele local que é sinónimo de tristeza e dor”, conta para depois acrescentar que esta não será a única capacitação.

A nossa fonte asseverou ainda que actualmente o cemitério de Lhanguene tem um efectivo de cerca de 25 coveiros e 32 senhoras que se dedicam à limpeza diária do recinto, todos contemplados na capacitação deste mês na cidade de Maputo.

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