Maputo chegou a ser uma das cidades mais bonitas de África, devido à beleza arquitectónica dos seus edifícios. Mas agora o centro da cidade, algumas ruínas de edifícios históricos, e as construções nos topos dos prédios, ilustram o declínio que representa a ausência de uma política de urbanização.
Quando se caminha por alguns bairros do Distrito Urbano de KaMpfumo, sobretudo o da Malhangalene, na capital do país, não é preciso redobrar a atenção para ver que nasceram novos edifícios no topo dos prédios de dois, três e quatro andares. Construções precárias que não obedecem a nenhum tipo de normas arquitectónicas.
As pessoas constroem, ora porque alugam as suas residências para reforçar o já deficitário rendimento familiar, ora porque o agregado familiar cresceu e teve de se improvisar espaço para os que vieram.
Mas nem sempre foi assim: Em 1980, do Alto-Maé ao bairro Central era aconselhável que a densidade populacional se situasse entre 200 e 300 mil habitantes por hectare.
Essa conclusão foi retirada de um plano feito em 1985 pelo Instituto Nacional de Planeamento Físico (INPF), o qual preconizava que uma família média tivesse cinco pessoas.
Um cenário que apenas os bairros da COOP e Sommershield corporizavam naquela ano. Ou seja, nos bairros do Alto-Maé, Central e Malhangalene, nessa altura, já era frequente encontrar flats do tipo dois com 14 a 25 pessoas.
Nessa altura, refira-se, fez-se a nivelação do piso do bairro do Maxaquene, entre 1978 e 1980, na perspectiva de instalar infraestruturas adequadas, criar espaços livres e abrir ruas em condições. Igual trabalho foi feito no Polana Caniço-A como forma de resolver o superpovoamento do Alto-Maé, Central e Malhangalene.
Uma intervenção, diz-se, bastante cara mas que resultou infrutífera porque não teve correspondência na capacidade financeira, técnica, material e de gestão que permitisse a urbanização que se pretendia em benefício da população. A área dividida em talhões estava calculada para beneficiar 60 mil pessoas, número que subiu para 100 mil na altura da ocupação.
Densificação demográfica violenta
A densificação da cidade de Maputo não obedeceu ao movimento normal que se verificava na altura em que o país fez o estudo da população, o qual referia que as estruturas físicas de Maputo e Matola estão ligadas, embora administrativamente pudessem estar separadas.
O director do INFP, em 1980, numa entrevista para a revista Tempo, sustentou que a densificação em flecha e desordenada veio alterar em certa medida o que o plano continha nas suas hipóteses.
Ou seja, se a população da cidade de Maputo era de 650 mil habitantes, em ‘80, previa-se um crescimento de 2,8 porcento o que traduziria, em 1985, um milhão e 35 mil habitantes. “Em verdade, porém, o que está a acontecer é que não há um crescimento natural, mas sim uma violentação demográfica, na forma galopante como a população está a aumentar”, referiu.
Casas em cima de casas
Contemplando os terraços dos edifícios no largo de Minho, no bairro de Malhangalene, vêem-se várias casas a ser arquitectadas, bem como telhados dos quais sobra apenas o nome e alguns vestígios dum passado cheio de beleza e brilho.
Na rua de Viseu assiste-se a pior cenário, numa fileira de prédios cujos últimos pisos estão alienados por estas construções, escapando apenas o primeiro à entrada da rua, quiçá porque o tecto terá desabado.
Essas obras são normalmente do tipo 1 e 2 com sala, quartos, cozinha e casa de banho feitas de bloco ou tijolos de 10 e de 15 centímetros, cobertas de madeira e zinco e desprovidas de vigas ou pilares, abrigando em média agregados familiares de três pessoas.
Contêm no mínimo uma cama, estante com televisor e aparelhagem sonora, uma mesa de 4 cadeiras, tambor de 110 litros e alguns bidões de 20 litros, “boquisso” (guarda-roupa) entre outros bens pesados.
O pouco espaço que a casa não ocupa serve de quintal, onde se lava roupa, sendo o destino da água incerto, confeccionam-se os alimentos, moe-se amendoim e milho, organizam-se festas nas quais se dança a noite toda, enquanto noutro tempo os petizes brincavam às escondidas, saltavam a corda e muito mais.
A baixa da cidade não está isenta dessas construções à margem da estrutura urbana (povoar por cima ou além da área traçada) bastando apenas olhar atenciosamente para o topo de alguns edifícios para enxergar os traços da luta por onde esconder a cabeça.
Algumas dessas “casinhas” são pertenças de moradores, resultado da incapacidade da flat para acomodar todos os membros da família, exiguidade de espaço estratégico na urbe, bem como para fins de aluguer da flat.
“As casas (com todo o orgulho) são nossas e construímo- las porque a flat ficou pequena, só assim conseguimos ampliar o espaço habitacional e muitas coisas lá fazemos à semelhança de quem mora num quintal suburbano” contou ao @Verdade uma das moradoras dessas casas na rua de Viseu, no prédio designado Espanha, acrescentando que “se houvesse algum perigo há muito que teria acontecido algo.”
Essa situação de morada no cume do prédio não agrada a todos, caso desse morador que ocupa um dos andares inferiores que se mostra indignado e sem ter o que fazer senão conformar- se.
“Uma vez que o município lhes concedeu licença para executar essas obras, nada mais podemos fazer, somente eles sabem das razões para construir lá em cima, sendo um dos maiores incómodos diários a água usada, que quando desce torna o rés-do-chão uma autêntica imundície”.
O que é permitido
De acordo com o decreto nº 2/2004 (Regime de Licenciamento de Obras Públicas) aprovado pelo Conselho de Ministros a 16 de Março de 2004 estão dispensadas de licenciamento as obras particulares: de conservação, restauro, reparação ou limpeza, quando não impliquem modificação de estrutura.
No interior dos edifícios ou de fracção autónoma quando não impliquem modificação da estrutura existente, das fachadas, da forma dos telhados, do pisos, ou aumento do número de fogos.
São igualmente dispensadas do licenciamento a execução de pavimentos, muros, trabalhos de ornamentação no interior dos terrenos particulares floreiras e pequenos muros com altura não superior a um metro.
Um edifício alto deve ter por norma um terraço – Domingos Macucule, mestrado em Arquitectura
“O terraço é uma zona não edificante, restrita à utilidade pública e de segurança, entre várias situações; em caso de ocorrer um incêndio é por lá onde se faz o resgate das pessoas, uma vez que hoje as varandas estão supergradeadas”, refere. Aliás, “essas construções põem em risco a segurança dos moradores e do próprio prédio, perturbam o sistema de evacuação da água e de esgoto.”
Definitivamente, diz, a construção nos terraços é um atropelo à lei, por isso a edilidade não deve licenciar a realização dessas obras como forma de salvaguardar a segurança dos próprios munícipes. Mas: “em caso de necessidade de uso pode-se ocupar no máximo 25% a 50% do terraço não para fins habitacionais, mas como área de apoio à flat para armazenar alguns bens de baixo porte”, sublinhou.
Apesar disso, para Macucule a construção nos terraços não pode ser vista apenas como problema, mas também como solução doutro problema urbanístico, pois enquanto a pessoa constrói e habita nesse terraço continua a beneficiar das facilidades que a cidade oferece; o mesmo pode não acontecer em caso de morar fora da cidade onde devem ser criadas infra-estruturas que liguem às pessoas à vida da urbe.
Outro problema, diz, é que isso denuncia a rejeição deliberada do sistema urbano herdado dos portugueses construído num outro plano de conjuntura social. Já que, até hoje a edilidade não se preocupou em ajustá-lo à actual realidade e exigência social, as pessoas tendem a actualizá-lo por si mesmas. Entretanto, “há a necessidade de se rever ou mesmo mudar o mecanismo de planeamento da cidade e, acima de tudo, reflectir-se sobre que cidade se pretende no futuro”, concluiu.
Deve-se criar um sistema de controlo – José Forjaz, Arquitecto
“A origem destas construções assenta na pobreza e na incapacidade de controlo do Concelho Municipal da Cidade de Maputo (CMCM), aliás, é natural, não é uma acusação que eu esteja a fazer”, refere José Forjaz. Até porque “não é possível dentro do orçamento da edilidade não haver um corpo capaz de controlar as construções que se fazem.”
O arquitecto aponta a criação de um sistema de controlo a nível dos bairros como solução para o problema. Mas antes defende o levantamento do número de construções existentes. “Estas edificações são fáceis de se erguer e difíceis de se destruir”, explica. O outro problema mais difícil é o de habitação em Maputo, motivado pelo elevado índice de pobreza rural e urbana, que só terá solução quando o nível de vida subir para toda a gente, pois (hoje) há gente a ficar cada vez mais indigente, enquanto outros se tornam abastados. Em geral essas construções são algo precárias e os edifícios altos são desenhados com margem de segurança, daí que se esteja provavelmente ainda longe de perigo iminente. No entanto, para uma resposta cabal e responsável é necessário analisarse caso a caso.
Trinta e cinco anos passam depois que o Estado moçambicano nacionalizou o parque imobiliário. No entanto, o grau de conservação dos imóveis deixa muito a desejar. Alguns edifícios clamam por uma urgente reabilitação de raiz. Paredes furadas, com rachas e sem cor que não fazem jus ao lema Maputo – Cidade Próspera, Bela e Limpa.
Outro denominador comum é o estado dos telhados e terraços, dos quais pouco ainda pode se ver senão vestígios que permitem apenas testemunhar que algum dia foram dignos dessa designação. Janelas sem vidros nem rede e deficiente sistema de esgoto, drenos e fossas que libertam excrementos nos mesmos espaços de que o homem se serve para circular, bem como conferem à cidade um cheiro bafiento. Na fileira de edifícios assentes ao longo da avenida Eduardo Mondlane, a escassos metros da esquina com Guerra Popular, o capim e trepadeiras têm lá o seu abrigo.
Forjaz apela para que se encontrem soluções para pôr as casas em condições, porque as pessoas que outrora habitavam nelas tinham uma capacidade financeira 30 vezes maior do que estas que hoje as ocupam. “O seu rendimento não é suficiente para substituir o vidro partido, pintar as paredes, reabilitar aqui e ali”, sublinha. Por exemplo, “quem ganha dez mil meticais de salário, que é três vezes mais do que o salário mínimo, ao cuidar da alimentação, do vestuário, do transporte, da educação e da saúde, sinceramente, nada lhe resta para olhar pela casa”, conclui.
Em suma: de uma forma bastante real, Maputo é um mundo perdido – ou pelo menos uma cidade perdida onde a magnificência do seu passado é evidente em todo o lado.