A bolsa da minha mãe é um cesto de palha, pálido, usado, discreto. Muito discreto. Só dá nas vistas quando se pendura no ombro dela, aninhando-se na axila, sobre os panos coloridos em que se enroupa. Inseparável da minha mãe, não tem a sofisticação de outras bolsas que conheço.
Sei que ao contrário das outras, não leva batons, não leva pente, não leva telefone celular, não leva perfumes, não leva pensos higiénicos, não leva documentos, não leva chaves, não leva lista do mercado, não leva prendedor de cabelo, não leva espelho, não leva caderninho de anotações, não leva lixa de unha, não leva nenhuma outra coisinha dessas, adereços de bolsas refi nadas.
Eu nem sei ao certo o que a minha mãe leva naquela bolsa, mas vejo-a meter acessórios simples: uma capulana, alguns sacos plásti cos e pequenas tigelas, que lhe permitem regressar, ao fim do dia, com o kit básico para a nossa sobrevivência. Na bolsa da minha mãe não há grandes valores, não é uma bolsa de valores, mas é o bolso lá de casa.
Muito cedo, às cinco horas da manhã, ainda as acácias não balançam as suas sombras, a minha mãe faz-se à rua, protegendo na axila a bolsa, com um cuidado muito maternal, como se nós, os filhos, viajássemos dentro dela. Ouvimos a porta ranger com ternura e vemo-la fechar devagarinho, com o mesmo insti nto que o pássaro mãe deixa o ninho e parte à procura de alimentos para as crias.
Esfregamos a ramela, fungamos o hálito da manhã, despertamos para as nossas obrigações diárias, enquanto esperamos, no aconchegante ninho do lar, que ela nos venha dar de comer no bico, uma a um, como os pássaros. Ao fim do dia ela regressa de tronco inclinado, vergando ao peso da bolsa.
A bolsa da minha mãe é um cesto de palha. Vem cheia, e a minha mãe cansada, mas sem sinais de desânimo, desfaz o cesto cheio de coisas. São ingredientes para a refeição que vai preparar. Põe sobre a mesa. A mesa até então vazia, parece ganhar uma repenti na e solene abundância.
Sobre o encardido da toalha amontoa diversidades de folhas verdes, e alguns outros ingredientes, como duas ou três cenouras escurecidas, quase tocadas, dois ou três tomates de pele murcha, duas ou três cebolas quase despidas, em dias de sorte alguma fruta, duas ou três bananas um tanto pisadas, pão, ou pedaço de carne ou peixe embrulhado num saco plástico.
Nós, ávidos, contemos a ansiedade enquanto ela se faz àquele ritual que antecede o preparo das refeições: lavagem, descasque, corte. Leva os ingredientes à panela com muita destreza e recorre sempre à bolsa, o cesto de palha, para apanhar algum tempero que dê sabor à refeição.
Enquanto cozinha um som mudo sai-lhe da alma e cantarola em quase silêncio, melodias inconfundíveis, da igreja, como se soprasse uma flauta de boca fechada.
Sentamo-nos à mesa, os pratos carcomidos pelo tempo não se agitam quando a panela vem, fumegando. Não há muita conversa à hora da refeição, comemos em silêncio, sem fome. A fome é um senti mento ao qual estamos imunizados.
Ouvem-se os sons carnívoros de dentes triturando e as bati das da pulsação masti gando a ansiedade. Comemos animalmente, mais por missão que alimentação. Nem sempre se pode encher a barriga, é preciso guardar para o dia seguinte.
A comida é geralmente verde, folhas preparadas com amendoim e coco. Em dias de carne, a minha mãe reparte por igual os pedaços trinchados, enquanto mancha com o molho a alvura do arroz.
Demoramo-nos diante dos pratos usados, mesmo já não havendo o que comer, para prolongar o momento de felicidade. Entreolhamo- nos, ainda ruminando os restos entre os dentes, sem conversas, afecto apenas. Bebemos água para encher a barriga, e um arroto leve escapa. Os olhos húmidos parecem-nos brilhar no escuro da luz pálida. Sorrimos na alma. Comida é amor para os pobres.
A bolsa da minha mãe, discreta, espera pela missão do dia seguinte. Não tem a sofi sti cação de outras bolsas. É um simples cesto de palha, que todos os dias, de forma mágica, nos traz o que comer. É um cesto simples, um cesto básico, muito básico, que diariamente nos traz a nossa CESTA BÁSICA.