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“Escrevo para me divertir”

O escritor moçambicano, João Paulo Borges Coelho, saltou para a ribalta mediática na semana passada após o anúncio da conquista do Prémio Leya – o maior, monetariamente falando, em língua portuguesa (100 mil euros).

@ VERDADE foi ouvi-lo falar do “O Olho de Hertzog” – a obra inédita que venceu o galardão –, da sua obra literária em geral, da dicotomia realidade/ficção e do estado actual da literatura moçambicana. João Paulo falou de tudo com uma humildade impressionante :

@VERDADE (V) – Após a atribuição do Prémio Leya, disse a uma agência de notícias que estava “nas nuvens”. Ainda está?

João Paulo Borges Coelho(JPBC) – Não estou propriamente nas nuvens. Foi, se calhar, um desabafo. Podia ter dito outra coisa qualquer. Estou onde sempre estive. Às vezes em casa, outras no serviço (risos).

(V) – Disse também que não tinha a intenção de concorrer.

(JPBC) – É verdade. Estava a acabar um romance quando a minha mulher chegou com o regulamento e sugeriu- me que concorresse. De facto não me passava pela cabeça concorrer. Ela é que insistiu. Fizemos as duas cópias, como estipulava o regulamento, e enviámo-las. Fiquei com o livro preso. Estava ansioso pelo fim do concurso para libertar o livro que estava preso porque o regulamento impunha essa espera. Mas não tinha muitas esperanças de me sagrar vencedor porque havia duzentos e tal manuscritos para avaliação.

(V) – Quem é que lhe deu a notícia?

(JPBC) – Foi o Manuel Alegre, que é presidente do júri. Telefonou para a minha casa umas horas antes do anúncio. Disse-me para eu estar preparado para o assédio da Imprensa.

(V) – O que terá sido determinante na escolha do júri?

(JPBC) – Não sei. Tenho muita dificuldade em comparar literatura. Mas sem dúvida que a temática terá contribuído. Mas só posso dizer o que me motivou a escrever o livro. A grande motivação foi romper com uma perspectiva fechada daquilo que deve ser a literatura africana em geral e moçambicana em particular. Penso que vivemos um bocado para temas que são pré-definidos e isso, de alguma forma, limita, ou seja, constrói-se uma imagem do que deve ser a literatura moçambicana e africana e depois é como se os autores tivessem que corresponder a essa imagem fechada, estanque. Eu acho que a literatura africana é como todas as outras. É muito jovem, por isso mais frágil, mas tem de falar sobre aquilo que bem entender, embora haja sempre uma marca, há sempre uma perspectiva a partir daqui, mas o resto não tem de sofrer qualquer limitação. Acho igualmente muito interessante desdramatizar os temas da literatura.

(V) – O que é este “O Olho de Hertzog”?

(JPBC) – Não há uma razão, não há um tema. Normalmente, não faço ideia de como se vai desenrolar o romance, contudo, tinha dois pontos de partida. Um era um diário do general Von Lettow-Vorbeck, chefe militar da Tanzânia – nessa época pertencia à Alemanha que entrou em Moçambique com um grupo de soldados. Deambulou até às portas de Quelimane meio a fugir de ingleses e portugueses, derrotando-os sempre que com eles se confrontava. O objectivo desta incursão permanece um mistério. Acabou por tornar a subir sem chegar a Quelimane. Rendeu-se na actual Zâmbia quando a Alemanha perdeu a guerra. O espaço temporal do romance é 1917/19. O outro é a Lourenço Marques dessa época muito em volta da figura de João Albasini, um jornalista muito importante na época, tendo inclusivamente fundado dois jornais muito importantes: “O Africano” e o “Brado Africano”, publicações que questionavam a situação colonial, sobretudo aspectos sociais do final da Monarquia e do início da República. Albasini era uma figura curiosa, ambígua: um mulato oriundo de uma família importante de origem italiana mas a mãe era uma rainha negra da zona sul.

(V) – Pode considerar-se Albasini uma figura precursora do nacionalismo moçambicano?

(JPBC) – É mais uma figura de transição. Assinava os artigos conforme as faces que tinha. Tinha muito pseudónimos. Quando escrevia à portuguesa chamava-se João das Regras. Quando desafiava mais, assinava “Chico das Pegas”. Escrevia muito bem. O Governador ouvia-o assiduamente e aconselhava-se com ele.

(V) – Porque lhe interessa tanto a Lourenço Marques dessa época (1918)?

(JPBC) – Porque há zonas na baixa da cidade, na parte velha, que eu vejo desfiguradas, sobretudo à volta da Rua Araújo (Bagamoyo). Não é que eu tenha uma perspectiva conservadora, mas acho importante dialogar com um certo espírito que as pedras têm. Indigna-me que a falta de memória arrase tudo. Há aqui também uma grande vontade de correr um certo risco, jogando com o que é a História e a ficção. Gosto de explorar esses dois campos que me são especialmente caros.

(V) – Estamos em presença de um romance histórico?

(JPBC) – Não é um romance histórico, como eu o entendo, porque parte de uma base em que o paradigma é o real. Neste caso há um acontecimento mas, se não tivesse terminado assim, poderia ter terminado de outra maneira. Às tantas senti necessidade, para esclarecer a distância, para desdramatizar essa aparência de real, de trazer fenómenos de inverosimilhança.

(V) – Mas há personagens reais.

(JPBC) – Há o Albasini, o general alemão, mas também tem a amante imaginária do Egon Shield. É uma brincadeira, que é isso que me move. Estou aqui para me divertir. A História dá-me muitas bases, pois há grandes transformações nesta época: a estação dos caminhos-de-ferro, as linhas em expansão, o trabalho migratório para a África do Sul, etc. Aliás a África do Sul está muito presente. Um dos aspectos centrais, que faz mover a história, é um crime ocorrido em Joanesburgo em 1914. Mas nada disto foi muito pensado.

(V) – Quanto tempo levou este “O Olho de Hertzog”?

(JPBC) – Cerca de um ano. Mas a pegar e a largar.

(V) – Ainda se considera, como disse há alguns anos, um escritor na clandestinidade no sentido em que não assume este ofício a tempo inteiro?

(JPBC) – Não sou um escritor a tempo inteiro nem podia ser. Escrevo muito, quase todos os dias, mas nunca pensei nisso a sério. Primeiro porque não tinha bases. Tenho tiragens muito modestas, não conseguia viver disso. Depois porque não sei se era isso que me convinha. Gosto de trabalhar em História que é a profissão que escolhi. Se eu pudesse viver mais confortavelmente da escrita sem dúvida que faria um reajustamento. Dou à escrita o espaço que ela vai conquistando. Não tenho nenhum plano. Se ela conquista um espaço maior deixo-a respirar, não vou controlá-la.

(V) – A “Crónica da Rua 513.2” é um livro escrito à base das suas memórias?

(JPBC) – Não são só das minhas mas também de outras pessoas. São privadíssimas mas que não se distinguem das memórias que as outras pessoas possuem desse tempo. O ponto de partida é a minha rua, embora não o diga nunca. A ideia dos fantasmas como um recurso para ir buscar o antes é porque eu fui uma das primeiras pessoas da nova vaga a ir para ali – Bairro do Triunfo –, em 1977. Grande parte das casas ainda estavam vazias e por isso as portas batiam de noite. Considerei isso como fantasmas concretos, reais. Por isso, há sempre um pouco aquela sensação de que ali já morou gente. Encontrei pequenos índices do real com os quais alimentei a ficção como, por exemplo, um caderno de registo de revisões de automóveis datado dos anos ´40. O proprietário era mecânico de automóveis e tinha todos os trabalhos registados num livro desde aquela altura. Pus igualmente o Podgorny – presidente da ex-União Soviética que esteve em Moçambique – a visitar o bairro, coisa que nunca aconteceu. Há uma grande mistura entre o real e a ficção neste livro.

(V) – Atendendo à sua formação académica em História – disciplina que procura a objectividade, factos concretos, reais – a ficção na sua literatura funciona como uma libertação?

(JPBC) – São registos diferentes, mas tenho muita necessidade de ambos. Há uns tempos participei num seminário do qual resultou um pequeno livro que mostrava as diferenças entre a escrita académica e a literária. Nele procuro destrinçar claramente as duas coisas. A História é ensombrada pela verdade, não é a verdade em si nem o passado, mas sim um discurso actual do presente e de certa maneira sobre o presente usando o pretérito passado. O paradigma do historiador é dizer a verdade e para isso recorre a técnicas, fontes, objectividade. Enquanto o paradigma do escritor é um pouco misturar o objectivo com o subjectivo e dar o lugar que este último merece porque nós vivemos um presente que é muito vulnerável a esta tirania da objectividade. Não há ninguém que viva plenamente satisfeito dentro de um quadro de objectividade total. Na literatura quero dizer coisas que não se dizem dentro da História. A ficção é uma forma de expressão que eu, como cidadão, me sinto no direito de criar. Quem tem necessidade de criar, cria. Gosto de flanar entre um e outro.

(V) – Na obra “Campo de Trânsito” pega num tema sensível: os campos de reeducação – espécie de Gulag moçambicano. Quis dar, de uma forma ficcionada, a conhecer às pessoas o que se tinha lá passado?

(JPBC) – “Campo de Trânsito” tem um registo mais de alegoria. Há uma nítida procura de denunciar mas sem citar nomes. Não se pode muitas vezes denunciar dentro da História, o que, diga-se, como historiador, me desgosta bastante. Falta muito material nestas pesquisas. Há enormes lacunas. Se esse material estivesse disponível poderia trabalhá-lo do ponto de vista do historiador. Ninguém me disse que não o fizesse. O objectivo do livro não era compensar a falta de coragem para escrever a História dos campos, nem tão-pouco dialogar ou interpelar vítimas e carrascos. O registo da literatura é privado. Senti-me bem a abordar o tema desta forma. Há referências a locais, embora sem nomeá-los. Mas não houve o menor esforço para ir buscar documentação, fontes fidedignas, etc. Foi tudo ficcionado. Há muita gente que não recebeu bem o livro por isso.

(V) – Mas, mesmo para ficcionar, não procurou saber como era o dia-a-dia nos campos?

(JPBC) – É uma área de pesquisa ingrata porque as respostas são sempre muito curtas. Há silêncios pesadíssimos à volta disso e é preciso escavar muito.

(V) – Mas a história de como as coisas se passaram deve ser conhecida.

(JPBC) – Claro. Aliás, acho que há muito poucas coisas que ficam enterradas para sempre. No geral acaba tudo por vir à superfície. Acho que é uma ilusão pensar que há um manto de silêncio eterno sobre as coisas. Mas o livro tinha como objectivo a alegoria.

(V) – Qual é a sua ferramenta de escrita?

(JBC) – Lamentavelmente utilizo cada vez mais o computador. Gosto muito das canetas de tinta permanente, antigas, pesadas, e de bons cadernos de apontamentos. Há muito tempo que uso Moleskines antes de estarem na moda. Agora tenho alguma relutância em usá-los porque é quase um estatuto e estão muito caros (risos).

(V) – Como é que surge o encadeamento de ideias para um novo livro?

(JPBC) – Agora, por exemplo, estou a escrever um pequeno livro. Comecei-o sem qualquer ideia. Iniciei-o com uma palavra e estou a trabalhá-lo de uma forma um bocado diferente. Mas geralmente tenho uma ideia vaga de arranque mas nunca uma ideia de como as coisas vão terminar. Nos livros anteriores fiz um vago esqueleto que depois desenvolvi. Mas as coisas transformam-se muito ao longo do percurso.

(V) – É, então, uma escrita muito vagabunda?

(JPBC) – Sem dúvida. É errática até sentir depois que as coisas vão fechar de uma forma coerente. Mas não há planos detalhados. Mas o romance, como género literário, dá para tudo.

(V) – A escrita é um exercício privado?

(JPBC) – A minha é (risos). Durante o acto não vejo minimamente o leitor. Nem penso nele. Se chego à conclusão que as coisas me interessam escrevo. Não estou minimamente preocupado com o leitor.

(V) – Isso não é uma atitude um pouco radical?

(JPBC) – Sim, dito assim, será seguramente. Não vou dizer que o leitor não esteja presente, até de uma forma inconsciente. Se lermos o Samuel Beckett ele, nesse sentido, é muito radical, não faz cedências. Um exemplo mais recente é o Lobo Antunes. A escrita dele é quase uma soltura de um magma interior e nesse sentido é um monólogo. A minha é bem mais leve. Há uma cedência no sentido do diálogo com o leitor. Mas posso garantir que não vejo a cara do leitor. Estou ali sozinho e é um assunto meu que depois se completa no livro. Há uma diferença muito grande entre o manuscrito e o livro. Entre um e outro passa-se por metamorfoses profundas do objecto. De tal forma que nem olho bem para o livro.

(V) – Nunca (re)lê os seus livros?

(JPBC) – Não, nunca. Só pequenos excertos. Incomoda- me tanto como ver uma fotografia de mim próprio. Há escritores obsessivos que ainda os corrigem. Há outros que nunca mais lhes pegam. Há de tudo felizmente.

(V) – Qual dos seus romances considera o mais conseguido?

(JPBC) – É muito difícil fazer essa avaliação. Por exemplo, o “Campo de Trânsito”, acho que é dos mais coerentes em termos de romance. O mais bem conseguido tinha obrigação de ser “As visitas do Dr. Valdez” porque é uma história que se passou com a minha família mas nota-se alguns períodos de gaguez. Mas todos eles são experiências. Olho para eles como produtos acabados e o que me agrada são as experiências diferentes que tenho com cada um.

(V) – É disciplinado a escrever?

(JPBC) – Normalmente, escrevo de manhã, muito cedo. Mas nem sempre tenho essa oportunidade. A melhor hora para mim é às cinco e meia da manhã: há silêncio, o ar está fresco, não há perturbações. À noite sinto uma grande perde de energia.

(V) – Como é que vê a literatura moçambicana hoje?

(JPBC) – Não vou contornar essa questão. A literatura moçambicana é ainda muito frágil, não só por escassez de escritores mas sobretudo de leitores. O nosso mercado é cooperante. Os livros são caríssimos. E, mesmo aí, não temos grande sucesso porque há uma literatura que vinga curiosamente idêntica à que vinga em Portugal. Nós temos escritores com carácter, que não entraram timidamente a pedir licença, que se expressaram. Já nem falo do Mia mas da Paulina Chiziene, do Baka Kossa, que considero excelentes. O “Ualalapi”, do Baka Kossa, deu um extraordinário impulso à literatura moderna moçambicana. Mas a questão passa por uma discussão mais séria sobre o lugar da leitura e da cultura. Não devemos ter a atitude de esperar a benevolência governamental. Temos de reivindicá- las como um direito. Mas a cultura ainda não tem o lugar que merece na nossa sociedade. Cabe-nos a nós conquistar esse lugar.

(V) – O espaço físico dos seus livros tem sido sempre Moçambique.

(JPBC) – Sim até agora sim. Não procurei deliberadamente. “Campo de Trânsito” é um não-espaço, na medida em que são referências geográficas precisas, embora haja pistas de que elas não são objectivas. Talvez tenha escolhido Moçambique porque me sinto mais à vontade. Mas a escrita não tem de pedir aos Estados carimbo nas fronteiras. A escrita ultrapassa isso tudo.

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