Desde que te foste embora naquela segunda-feira de manhã às duas e meia da tarde que me ponho à janela, todas a noites a fumar um L & M a sonhar com o teu regresso. Acendo o cigarro com o isqueiro que me compraste na feira da ladra – um zippo a gasolina do tempo do pós-guerra, cromado e com um desenho a cores de uma águia com as asas abertas que custou mil escudos, que pechincha – e atiro o meu olhar para o mar da palha que a lua acaricia em toda a sua extensão nas noites calmas de Setembro.
Moro numas águas furtadas do Bairro Lopes junto ao cemitério do Alto de S. João onde comprei este andar aconchegado de três assoalhadas com vasos comunicantes entre elas, que é como quem diz portas por todos os lados, com autorização da câmara para recuperar o sótão, foi o que me disse o vendedor que tinha caspa e sapatos cor de mel.
É claro que não havia autorização nenhuma, assim que comecei as obras apareceu logo um senhor com halitose que se apresentou como fiscal que me embargou tudo, fiquei com a casa de pantanas, escadotes e entulho por todos os lados, o senhor Antero, o empreiteiro, a dizerme a menina não se preocupe que se resolve tudo e foi então que quando fui à câmara te conheci atrás de uma secretária afogada em pastas e processos pendentes e me olhaste com aquele olhar predador que as mulheres temem tanto como desejam.
E num instante eu consegui a autorização e num instante tu conseguiste meter-te na minha cama. Ajudaste-me em tudo, até as licenças foram pagas por ti, quero ajudar-te meu amor, dizias com o teu sorriso de gavião deliciado com uma lebre mais gordinha do que é costume e eu convenci-me que gostavas mesmo de mim, que eras uma bênção vinda dos céus, eu que sou uma crente irregular, que não ponho os pés na missa desde que vim estudar para Lisboa, mas uma vez por ano vou a Fátima conversar com a Nossa Senhora e agradecer-lhe o empréstimo do banco e a sorte que tive em conhecer-te.
A pouco e pouco a casa foi fi cando arranjada, cá em baixo a sala e a casa de jantar e um escritório, lá em cima, pelo caminho tortuoso das escadas em caracol um quarto enorme com vista para o mar da palha onde a lua acaricia as águas sossegadas com a calma dos amantes de longa data, um quarto de vestir e uma casa de banho toda forrada a madeira tratada da Dinamarca que me custou uma fortuna e me fez aumentar a prestação no banco. Vivíamos felizes, tu ias todos os dias para a câmara e eu para a agência de viagens onde vendo sonhos empacotados a famílias com dois filhos e uma sogra avulso e por isso, quando te foste embora naquela segunda-feira entre as duas e as três da tarde e não voltaste, pensei que tinhas sido atropelado na Moraes Soares.
Telefonei para todos os hospitais e morgues, mas não estavas em nenhum, por isso como não morreste nem foste apanhado pelas rodas do 42, imagino que abriste as asas desenhadas no meu isqueiro e foste à procura de outra lebre, talvez ainda mais gordinha do que eu, a quem resolveste os problemas das papeladas, quem sabe outra tonta que como eu caiu no teu olhar predador. Sei que continuas a trabalhar na câmara, outro dia telefonei para lá, mas desliguei quando passaram a chamada e ouvi a tua voz, porque ensinaram-me no colégio lá em Viseu que nunca se deve correr atrás dos pássaros, eles têm asas e nós não, por isso é impossível apanhá-los.
Por isso fumo à janela, enquanto os aviões das rotas intercontinentais me pairam no olhar e imagino o teu regresso tão improvável mas sempre e ainda possível como a Nossa Senhora aparecer outra vez em cima da oliveira e dou comigo a pensar que se um dia quiseres, ainda te abro a porta, te deixo subir as escadas tortuosas em caracol, te deito na nosso quarto enorme com vista para o mar da palha e te aconchego no sossego dos amantes de longa data, transformo-me me lua e volto a ser tua, sem nunca deixar de ter sido.