É curioso como a maior parte de nós, ciclicamente, amaldiçoa a vida que tem. É uma característica do comum dos mortais. A permanente insatisfação com aquilo que tem. E a ambição de obter o que não tem. Quando muitas vezes somos deparados com algum acontecimento verdadeiramente importante, caímos normalmente em nós, e discernimos o essencial do acessório.
Valorizamos o que deve ser valorizado, para uns instantes mais tarde, voltarmos ao mesmo. Lembro-me de há muitos anos um bom e mais velho amigo dizer-me: “Estou num ponto da vida em que estou preparado para tudo. Ou quase tudo. Tudo menos a morte de um fi lho…” E no fundo a partir de determinada altura todos estamos. Neste ponto. Nós os que temos filhos.
Não me ocorre adjectivação possível para o que poderá ser a vivência de uma fatalidade tão dramática, quando se invertem todos os princípios da natureza. Porque naturalmente não é suposto alguém ter de enfrentar tamanha brutalidade. Vem este texto a propósito de e num espaço relativamente curto de tempo, ter este triste acontecimento batido à porta de pessoas que conheço. Bons amigos, injustiçados pela vida. Sigo a minha vida convencido que nos devemos contentar com aquilo que a vida tem para nos oferecer. Que a vida não nos dá nem mais nem menos do que aquilo que conseguimos suportar.
E que muitas vezes põe-nos à prova. Para ver de que raça somos feitos. Se temos fibra. Por muito que em determinados achemos que é demais. E por vezes deve ser. Tenho pensado, provavelmente como tantos outros, vezes sem conta nos momentos indescritivelmente dolorosos que os pais atingidos, heróis anónimos, devem passar nestas alturas. Por muito que pense nisso, não chego sequer ao principio da dor, de quem por ela passa. Mas esta é a forma que conheço de lhes dar alento. De lhes dar moral. De lhes dizer que a vida faz mais sentido, depois de olharmos a forma como enfrentam a vida de frente.
Que são um exemplo de coragem, de força e uma lição de vida pela forma como conseguem lidar com a coisa. E seguir o seu rumo, por vezes de forma mais dolorosa, mas sempre com sentido de vida, que por muito que não se queira, segue o seu rumo sem olhar ao passado e de olhos postos invariavelmente no futuro. De uma forma maior parte das vezes irritantemente fria e desonesta. Com quem não encontra justifi cação para a desgraça que lhe bateu à porta. São estes os meus heróis. Pessoas com quem muitas vezes nos deixamos de cruzar, que com quem muitas vezes e pela encruzilhada da vida não seguiram o nosso caminho, para muito mais à frente nos voltarmos a reencontrar.
Para lhes dizer, que a amizade também é feita da distância. Tantas vezes do afastamento inconsciente e involuntário. Para lhes dizer que são eles que contam. São eles os que nos mostram quão superfi ciais são os problemas com que nos preocupamos. São eles que nos mostram que se consegue sobreviver a uma dor que nos devassa o coração e rasga a alma. Que nos tira a respiração. Que nos paralisa de tristeza. São eles os meus heróis. São eles que nos mostram o que realmente vale uma lágrima.
E que as devemos poupar. De problemas superfi ciais. São eles os meus heróis. Mesmo os que não conheço. Porque todos somos pais e porque a todos nos dói. Provavelmente de forma diferente. Com a consciência momentânea que a vida é uma pequena e ténue linha que nos separa do outro lado. Que para morrer basta realmente estar vivo. São estes os meus heróis. Que rasgam um triste sorriso de conforto pelo calor do meu abraço. São estes os meus heróis. Que caem e se voltam a erguer. Suportados por alguns, mas maior parte das vezes sozinhos. Empurrados por eles próprios. Seguem o caminho, questionando com certeza o destino. Mas sem excepção, aceitando-o como uma inevitabilidade.
Convencidos de que não há dois caminhos. Ou que não há outro caminho. Que a estrada segue e caravana da vida não pára. São estes os meus heróis. De carne e osso. Que vivem na porta ao lado. Com quem muitas vezes nos preocupamos de menos. São eles os meus heróis. É deles que a parte do mundo boa é feita. Em quem me orgulho de me inspirar. Em quem penso cada vez que amaldiçoou a vida, por questões menores. São eles os meus heróis. Por quem hoje escrevo. Em quem hoje penso. Porque é disto que um herói é feito. São eles os meus heróis.