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“Vocês riem-se de cada coisa!”

“Vocês riem-se de cada coisa!”

Finalmente Raul, o coração fez-te a vontade: largou-te na última sexta-feira, dia sagrado para os muçulmanos e de paixão para os cristãos. Dias antes, havias confessado a várias pessoas que estavas cansado, que não estavas bem, mas, como o coração não te largava, não te ias embora. E, como falavas sempre em tom de graça, de piada, provavelmente ninguém te levou a sério. Sim, porque a morte não é séria, faz constantemente batota quando escolhe o seu alvo. E, no teu caso, fez mesmo batota e da grossa. Durante anos fizeste rir duas ditaduras (a portuguesa e a brasileira).

Depois fizeste rir uma democracia, onde nos primeiros tempos tudo era permitido. Porque no Portugal de 1974/75 “era proibido proibir”, como diziam os estudantes naquele célebre Maio de 1968. A primeira vez que te ouvi devia ter para aí uns cinco anos. A tua voz chegava-nos pelos discos de 45 rotações trazidos pelo meu tio nas suas vindas à então Lourenço Marques.

Confesso que tudo à minha volta ria, mas eu, pela tenra idade, não conseguia acompanhar as tuas piadas. (Tu dizias sempre: “façam o favor de ser felizes”). A partir dos sete, oito anos, comecei a deliciar-me com as tuas histórias. Com a “Guerra de 1908”, que do outro lado tinha a “História da minha vida” (desculpa mas essa história não foi só da tua vida foi da vida de todos nós); com a “Ida ao Médico”, com a “Selva e os seus Leopardos”, com “O cabeleireiro”, “Com o meu suicídio”, etc.

Perdi a conta às vezes que coloquei esses 45 a rodar no velho gira-discos do meu pai. Sabia-os todos de cor: as falas, as pausas, os risos do público, os teus momentos de gaguez, parece que até adivinhava as tuas caretas, sim porque tu sempre fizeste caretas.

Aliás, posso-te desfilar muitas dessas personagens: a senhora que vendia castanhas à porta da guerra; a Maria Albertina que se disfarçava de mulher para espiar o inimigo; a tua mãe que não queria que enchesses a guerra de moscas (“o meu filho vai a pé, mas vai limpo”); o teu pai que “era muito distraído”; o senhor de fato castanho que “andava lá por casa e ninguém conhecia”; a tua irmã Georgina “que gostava muito de dizer coisas”; o marquês proletário; a dona Júlia que “já tinha dado de manar a 12 meninos e a um marmanjão que não se casou com ela nem nada”; o engenheiro hidráulico de olhos verdes “que ficava sempre bem na prova”; o outro “teu pai” que trabalhava como escafandrista em Évora e que já não vinha a casa há dois anos mas a tua mãe foi ter com ele para tu nasceres; a dona Andreia e o gato farrusco; o marido da Gertrudes que foi levado por um gorila; a dona Matilde que levava a estola para o teatro; etc, etc, etc. Com todas elas chorei a rir. E, estou certo de que tu, se aqui estivesses, dirias: “Vocês riem-se de cada coisa!”

 

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