Em 1998, cerca de 150 mil habitantes da cidade de Milange, na província da Zambézia, entravam em pânico, ao assistirem, sem que nada pudessem fazer, à “revolta do dragão”, no monte Tumbine. Segundo dados colhidos na altura, os habitantes de Milange diziam que isto tinha que acontecer um dia, “andaram a cortar o cabelo do dragão até que ele se revoltou”.
A “ira do dragão”, que se manifestou a 19 de Janeiro de 1998, com chuvas torrenciais e vento forte, durante três horas, deu origem a resultados catastróficos: 73 mortes confirmadas, mais de uma centena de desaparecidos, 7500 pessoas desalojadas, 1325 machambas destruídas, 200 casas reduzidas a escombros e o aluimento de uma parte significativa da zona montanhosa.
Foi uma das maiores tragédias ambientais do continente africano, nas últimas décadas. Com mais de mil metros de altitude, o monte Tumbine nunca foi olhado como um bem perecível. Antes pelo contrário. Primeiro foram as plantações de chá que, no início do século, deram a fama à cidade, que se manteve até aos anos ´50. Depois foi a guerra civil, que levou uma percentagem significativa da população de Milange a refugiar-se no monte, em busca de segurança e de espaços para o cultivo de bens de primeira necessidade.
Numa encruzilhada cultural, um missionário local adianta a explicação das causas do desastre ecológico e das consequências trágicas do aluimento do monte: “Isto foi a cobra Napolo, que ocupa os buracos deixados na serra pelo arranque das árvores. A cobra Napolo tem sete cabeças e saiu da água porque já não existem praticamente árvores nas margens dos dois rios Melosa e Ruo.”
A catástrofe poderia ter sido ainda de maior dimensão se os aluimentos mais fortes tivessem ocorrido do lado da cidade: “Felizmente, os maiores aluimentos tiveram lugar no lado oposto”.
As pedras, de tamanho superior à altura de um primeiro andar, rolaram pelas vertentes da serra; a violência da chuva transformou pequenas ribeiras, com pouco mais de um metro de largura, em leitos de rio com 20 a 50 metros de largura. Foram três horas vividas de forma tão intensa que levaram o presidente do Conselho Municipal a não ocultar a emoção e a confessar ter apanhado o maior susto da vida: “As pedras vinham umas atrás das outras fazendo clarões. Era assustador! Alguns diziam que era o dragão a lançar chamas; outros julgavam que era a cobra Napolo.”
Alheios a explicações científicas, muitos habitantes são pelo recurso a ritos ancestrais que apaziguam medos e dor pela perda de familiares, amigos e haveres. Mesmo os mais letrados não renegam o que lhes foi transmitido pelos mais velhos; sabedorias herdadas que respeitam e acatam. Assim, Manuel Roupa, enfermeiro no hospital rural de Milange, lembra que em 1992 “o dragão já dera sinais de estar zangado”.
Entendido como um fenómeno cíclico, predeterminado, de cinco em cinco anos, o monte Tumbine fica “nervoso”: “Desta vez foi pior, apesar de não termos tido muitas entradas de pessoas feridas no hospital.”
Milange, em 1860, era uma zona importante de tráfico de escravos, dominado pelos árabes. As encostas da serra estavam guarnecidas de árvores de grande porte entrelaçadas por lianas. No começo do século XX, abolida a escravatura, os portugueses criaram dez empresas ligadas à cultura do chá numa área superior a mil hectares.
As sequelas desta e de outras ocupações desordenadas dos terrenos e a consequente desflorestação são factores que podem ter contribuído para o desastre ecológico e para a perda de vidas em 19 de Janeiro de 1998. Resignada, a população – embora sem esquecer que sob as enormes pedras jazem os corpos de muitos familiares -, voltou ao amanho das terras. “Os habitantes de Milange não ficam a chorar os mortos.
Sabem que a vida continua, e o sofrimento é algo a que estão habituadas.” Vivem em casas construídas com caniço, matope, estacas de bambu, e cobertas com capim seco. Na organização familiar, o homem faz os trabalhos em que é necessário o emprego da força: abate de árvores e corte de lenha. As mulheres e as crianças colhem os frutos e transportam-nos, bem como a lenha, até à cidade, onde os vendem nos mercados.
Segundo a tradição, os mortos foram enterrados nos locais onde foram encontrados, apesar de as autoridades recearem que a decomposição dos cadáveres possa vir a criar o perigo de contaminações: “É uma tradição antiga, difícil de modificar”.