No encontro com a pianista moçambicana, Melita Matsinhe – com uma larga experiência artística internacional – o @Verdade travou uma cavaqueira sobre a equidade de género. Trata-se de uma discussão contemporânea, diante da qual, a avaliar pela nossa realidade, nem as moçambicanas estão preparadas para enfrentar os seus custos. Ou, pelo menos, é que o comentário de Matsinhe deixa transparecer: “Posso afirmar que a mulher não deve ser sobrecarregada pela responsabilidade de sustentar a família. No entanto, eu sou uma mãe solteira”.
Instantes antes da realização do seu primeiro concerto, em Maputo, nove anos depois da sua estada em Oslo, na Noruega, o qual convencionou chamar Ndzi Yuhile, conversámos com a pianista moçambicana, Melita Matsinhe, a fim de perceber a sua experiência de mulher estrangeira na Europa, incluindo a sua visão feminista sobre as moçambicanas. Apreciamos, por exemplo, o debate que ela promove nas suas músicas em relação aos opostos complementares homem e mulher. Por essa razão, perguntámos-lhe se – na sua visão – essa relação era pacífica ou conflituosa.
“Quando me refiro ao masculino e ao feminino, estou a falar acerca dos conflitos internos que cada um de nós possui. Travo uma contenda com o facto de ser feminina e, consequentemente, ser considerada mansa e, muitas vezes, perceber que não sou nada disso. Há vezes que sinto que tenho uma energia masculina que se manifesta através do meu comportamento em certos momentos. O problema é que, infelizmente, eu não sei se a alimento”, começa por dizer Melita expectante porque – como se percebe no parágrafo seguinte – ele nutre algum fascínio pelo feminismo.
“Sou fascinada pela ideia de ser mansa. No entanto, há sempre um diálogo entre o masculino e o feminino que coabitam em mim. Trata-se de uma conversa que se extrapola para a sociedade tendendo à definição dos papéis sociais entre homens e mulheres. Porém, essa discussão não precisa de ser conflituosa. Para isso é fundamental que a gente saiba quem é quem na família – o que também se define a partir do diálogo”. Como homem, tenho a consciência de que uma coisa é ser mulher, feminina e outra é ser feminista.
Entretanto, em relação a Melita, a minha abelhudice começa por aí. Se ela for feminista, como se define o seu feminismo? Serena, a pianista reconhece que “o feminismo é uma questão muito complexa, muito em particular porque já dei à volta pelo mundo e estou no (meu) ponto inicial. Nós as mulheres e os homens temos os mesmos direitos e obrigações desde que nascemos. Entretanto, as minhas obrigações enquanto mulher não são as mesmas que as do homem”.
A esta pianista que viveu algum tempo em Cuba, ainda na infância, e, muito recentemente, na Noruega, não faltam argumentos para os seus pontos de vista. Diz ela que “essa relação define-se em função das dinâmicas, dos sentimentos e da contextualização, porque eu posso afirmar que a mulher não deve ser sobrecarregada pela responsabilidade de sustentar a família. No entanto, eu sou uma mãe solteira. Logo, tenho de pôr o dinheiro na mesa devendo, para isso, nalgumas vezes, realizar um trabalho masculino”.
Por outro lado, “dentro de uma relação conjugal, podemos todos – homem e mulher – ir trabalhar. No entanto, na hora do regresso, em que, supostamente, ambos devíamos estar a descansar, eu, mulher, tenho de ir à cozinha. Essas relações negoceiam-se, mas estão dentro de um contexto no qual eu defendo os direitos da mulher, sobretudo porque no meu país, as mulheres são oprimidas única e exclusivamente por serem mulheres”. Melita deu uma volta pelo planeta, que além de a tornar uma cidadã do mundo capacita-a a fazer uma construção social da mulher moçambicana em relação às das outras parcelas da terra. Que comparações estabelecem neste sentido?
É preciso perceber que “a minha tese de mestrado aborda temas relacionados com as mulheres africanas que são artistas a viver na Noruega. Trata-se de um exercício em que fiz essa comparação, no campo da música, tendo constatado que, independentemente da sua origem, em Oslo, a mulher é uma minoria. A mulher ainda tem menos oportunidades que o homem. Entretanto, quando se iguala a oferta de oportunidades para ambos, elas ainda têm de trabalhar muito para provar o valor que possuem”.
“É certo que, provavelmente, em Maputo só haja dois porcento de mulheres artistas, enquanto em Oslo há 20. De todos os modos, as mulheres ainda são uma minoria nas artes”. É importante salientar que, segundo Matsinhe, “a Noruega é um dos países em que os direitos da mulher são muito protegidos. É por essa razão que também aprendi bastante sobre a tolerância e a aceitação de que cada pessoa tem o seu espaço na sociedade, incluindo a consciência de que tenho os meus direitos – o que a mim cabe fazer é lutar porque só assim sou capaz de conquistar o que eu quero”.
Mulher moçambicana
Tendo em conta que esta artista tem uma experiência de cidadã estrangeira, deduzimos que – em resultado disso – também tem o olhar de moçambicana fora do seu país para dentro. É a partir daí que a sua visão sobre o tópico de direitos da mulher tem um valor próprio. Considera ela que “em Moçambique o despertar da mulher – a fim de lutar pelos seus direitos – não foi protagonizado por si e para si, porque foi o homem que inaugurou esse debate, disseminando essa mensagem. O ponto é que se homens e mulheres nascem juntos, no mesmo contexto cultural, porque é que só o homem desperta em detrimento da mulher?”
Então, à partida, constata, “talvez o problema tenha a ver com a discriminação que as mulheres sofrem a partir da sua infância prolongando-se pelo curso da sua vida: Ela nasce em casa do pai de onde é lobolada para a família do marido. Em resultado disso, ela, como mulher, não vive a experiência de saber e conhecer como o mundo é fora desse circuito. Não descobre a necessidade de se ter de fazer valer fora dos parâmetros definidos no contexto da sua família paternal e marital”.
Por tudo isso, aconselha, “nós, as mulheres, temos de despertar para esta questão sobre os nossos direitos, até porque, felizmente, existem organizações que trabalham com esses assuntos que se esforçam a fim de influenciar, favoravelmente, a vida da mulher. É provável que estas organizações sejam mais abundantes nas cidades numa situação em que, em contra-senso, muitas mulheres necessitadas se encontram nas zonas rurais. E neste sentido que devíamos actuar mais”.
Fundadora da sociedade machista
A minha recente leitura ao livro “Literatura Feminina – Literatura de Purificação”, do ensaísta moçambicano, Cremildo Bahule, consolidou o meu ponto de vista sobre o facto de que a sociedade tradicionalmente machista em que vivemos é fomentada pela mulher. Ela é a base que sustenta o edifício da nossa educação.
Melita concorda com este ponto de vista, mas tem algumas indagações: “A questão de fundo é que esta sociedade tradicionalmente machista é fomentada pela mulher que conhece os seus direitos, ou por aquela que simplesmente acredita nos valores masculinos e machistas? Na nossa sociedade é sintomático que quando – por qualquer razão – a mulher abandona a casa do marido, retornando ao lar paterno, seja aconselhada a voltar ao seu lar, independentemente do que estiver a acontecer. Ou seja, são as próprias mulheres que se aconselham a favor da submissão a uma situação em que se fosse experimentada pelo homem não se aceitaria”.
Para a pianista, no país, “prevalece esta posição tomada por um conjunto de mulheres de poder que mantêm o véu da distância em relação aos nossos direitos femininos. Eu gostaria de saber como é que essas relações funcionam em sociedades matrilineares”. Fica este desafio para pesquisas antropológicos e culturais.