Em qualquer sociedade, as mulheres são consideradas um importante motor de mudança e desenvolvimento, porém, a violência física e os maus-tratos a que são submetidas, diariamente, pelos maridos obstam o seu papel na família, causam-lhe traumas capazes de condicionar o seu futuro e violam, de forma rústica, os princípios dos direitos humanos. Ana Constantino é um exemplo disso. Aos 26 anos de idade, ela vagueia pela capital moçambicana, desde 14 de Março corrente, com trouxas à cabeça e um menor de um ano ao colo, sem eira nem beira, em resultado de agressões físicas perpetradas pelo marido durante nove anos.
Ana Constantino vivia no bairro 11, no distrito de Magude, na província de Maputo. Ela fugiu do lar porque já não suportava a violência. A sua fisionomia, a face inchada, os hematomas em quase todo o corpo denunciam uma mulher desiludida com a vida transformam- -na num ser humano que parece ter uma idade avançada e com más lembranças da sua infância. Aliás, pela trajectória da sua existência, é fácil concluir que a cidadã viu a juventude passar-lhe ao lado em virtude de se ter casado ainda adolescente.
Visivelmente deprimida, a jovem fala muito pouco e faz um grande esforço para reconstituir o sofrimento pelo qual passou ao lado do seu marido, que lhe tirou da casa dos pais com a falsa promessa de uma vida harmoniosa. O seu consorte, descrito por ela como uma pessoa dependente do álcool, do cigarro e da soruma, tem 32 anos de idade e anda em parte incerta desde o dia em que a rapariga se ausentou do domicílio, por temer represálias das autoridades.
Em 2003, a cidadã a que nos referimos conheceu Samuel Inácio, algures na província Nampula, com quem passou a viver maritalmente dois anos depois em Magude. A partir dessa altura, Ana Constantino foi submetida a várias formas de agressão física, violência psicológica, moral, sexual e sofreu em silêncio. A uma dada altura, ela passou a não ter controlo sobre o que acontecia na sua casa mas não tinha a quem recorrer para ser ajudada.
O @Verdade encontrou a jovem numa igreja católica no bairro do Xipamanine a pedir abrigo e comida. O seu corpo estava cheio de hematomas e não conseguia sentar-se normalmente. Segundo a jovem, acabava de ser espancada há menos de 24h. A nossa entrevistada narrou que o seu marido a ofendia moralmente e protagonizava agressões físicas contra ela constantemente, principalmente quando consumisse álcool ou soruma. “Quebrava coisas, chutava as panelas, arranca a roupa do estendal e violentava-me.”
A vítima narrou ainda que sofria calada, levou bastante tempo sem pedir ajuda aos vizinhos por sentir vergonha e fazia de tudo para que ninguém percebesse que era destratada. Qualquer indivíduo via os sinais de agressão no seu corpo. Houve uma altura em que as brigas atingiram níveis alarmantes a ponto de Ana Constantino ser espancada na via pública. Contudo, “as pessoas mais próximas não acudiam e não me davam atenção, talvez porque consideravam a minha situação normal.”
A jovem cuja situação pela qual passou simboliza um ditado popular segundo o qual “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, no dia em que se apercebeu de que estava a ser ignorada e os seus direitos estavam as ser brutalmente infringidos, começou a impor-se, pese embora levasse tareia. O que também lhe doía é o facto de a negligência das pessoas em relação à violência doméstica a que estava sujeita ser grande.
Queixas em vão
Em 2004, o problema agravou-se: “Vivi um dos piores momentos da minha vida e não sabia o que fazer para me livrar da tortura”. Num sábado, à noite, o marido de Ana Constantino regressou de algures embriagado, drogado, pegou num pau e, impiedosamente, desferiu golpes contra a mulher, facto que a deixou sem os movimentos motores por algum tempo. Foi nesse dia que, pela primeira vez, a vítima recorreu à Polícia para expor as humilhações e maus- -tratos pelas quais passava mas com receio, porque, além do perigo que corria a ponto de temer pela própria vida, o cônjuge ficaria enfurecido e jamais deixaria de agredi-la.
A dado momento, a jovem perdeu a conta das vezes que fugiu de casa e pernoitou na rua para escapar da violência do seu parceiro mas continuava a acreditar que ele havia de rever o seu comportamento, sobretudo porque o consorte a impedia de fazer as malas e regressar à terra natal. Aliás, ela não tinha meios financeiros para se deslocar a Nampula a fim de pedir o apoio dos pais.
Em meados de 2011, Ana Constantino ficou grávida mas, pouco tempo depois, abortou em resultado de espancamentos. Dessa vez, a jovem recorreu à Polícia para denunciar o mal que lhe apoquentava. “Samuel Inácio considerava-me sua propriedade, tratava-me como uma peça de roupa com a qual podia fazer as suas vontades.”
A fuga
Há dias, Ana Constantino resolveu pôr um ponto final ao suplício. Ela separou-se do homem com o qual viveu nove anos e que a espancava frequentemente. Com as lágrimas a brotarem dos seus olhos inchados, a jovem contou-nos que, na sexta-feira passada, 14 de Março em curso, manteve uma conversa com o marido, a qual culminou com um desentendimento a ponto de Samuel Inácio bater nela de uma forma cruel na presença do filho.
Entretanto, apesar de ter ficado revoltada com a ofensa, a jovem manteve-se calma até à hora em que o cônjuge se ausentou da residência, pegou no descendente e embrenhou-se numa mata onde permaneceu por algumas horas. Entretanto, o ensaio de fuga não durou muito tempo porque no local onde Ana Constantino estava escondida havia mosquitos. Sem cobertor para se protegerem, a cidadã regressou à residência do agressor.
Para o seu espanto, a vítima encontrou a porta escancarada e entrou sorrateiramente mas o marido havia levado os seus pertences para parte incerta. Entretanto, a jovem não estava convencida de que o esposo fugira, por isso, na mesma noite, ela, também, arrumou as suas coisas e procurou refúgio na cidade de Maputo, onde pernoitou numa esquadra.
“Ao lado dele (Samuel Inácio) eu não tinha direitos, apenas devia cumprir ordens e era tratada como se fosse uma máquina”, desabafou Ana, que não tem parentes nem amigos em Maputo. No último sábado ela caminhou sem destino pelas artérias da urbe com o seu filho ao colo à procura de auxílio.
Sem lograr sucesso, ao cair da noite, a rapariga dormiu algures no bairro de Xipamanine, onde na manhã de domingo foi resgatada por uma transeunte que a levou para uma igreja no mesmo bairro, mas não sabe qual será o seu destino e da criança. Ana Constantino disse que o seu desejo é arranjar ocupação que lhe garanta a obtenção de algum dinheiro de modo a poder regressar à sua terra natal.