Amigos, hoje é um daqueles dias em que acordei sem nada para dizer. Gostava de ser mais prestativo, mais lúcido e mais amigável. Adorava ser o melhor pai, o melhor filho, o melhor colega de trabalho e o amigo de todos os que acreditam que a amizade é um dos frutos que se deve deliciar nas primaveras. Contudo, percebo que o dia de hoje não devia existir para mim. Estou desolado comigo mesmo. “Colérico comigo mesmo e com o mundo” é a frase que me caracteriza.
Saio de casa e enfrento a chuva que se derrama na cidade de Maputo. Ando bem devagar como se estivesse a ser forçado a viver. Entro no “chapa-cem” e não comprimento ninguém, mesmo os que me conhecem. Depois de uma luta para entrar no “chapa” sento-me num lugar podre onde se vê a esponja e alguns ferrinhos que vacinam o meu traseiro.
Olho para as minhas calças e vejo alguns baraços de sujidade que se colaram a mim enquanto lutava para entrar no referido meio de transporte. Apesar do barulho, fecho os olhos. Com o serrar dos olhos decido sonhar. Decido sonhar com um outro sonho. No sonho, decido trocar a sequência, supostamente, nata das coisas e reinvento o meu mundo. No sonho o meu nome é Ashanti Hendrix Pastorius. Nasci no século XXVI e tenho a idade da pedra de Sísifo. Não sou vegetariano porque como elefantes.
O meu mundo é azul e, na minha terra, a pedra chama-se sapato e a mesa chama-se lua. Todas as mulheres foram registadas com o nome de Katawe e os homens com o nome de Toko. Na minha terra não temos uma moeda nem possuímos a consciência da existência do Metical que tira o sono de muita gente. Não temos engarrafamentos, porque usamos camelos para nos deslocarmos.
Não detemos Governo, nem queremos ter a ideia de paridade. Não sabemos o que são raptos, porque cada um trabalha para ter os seus objectos e respeitamos a coisa do outro. Um dia, na minha terra, aceitaremos pessoas de outras nacionalidades para que possam espreitar e aprender de nós como se faz e se alicerça a ideia da unidade nacional. Cada criança tem direito a um computador, logo que inicia o ensino básico.
As mulheres não passam pelos ritos de iniciação porque já nascem preparadas para a vida. Na Kelesalândia, a minha terra, todos os kelesianos têm direito a um metro de superfície. Outro facto que me deixa alegre é que na minha terra as mulheres não usam “tissagens” ou outro tipo de cabelo postiço em detrimento do natural. Os homens consomem, apenas, a quantidade de 340 mililitros de cerveja por mês. Não comemos carne de porco, nunca temos “babalaze” e não oferecemos refrescos a nenhuma autoridade porque obedecemos às regras de condução. Nunca temos congestionamento de automóveis nas nossas estradas, porque cada família tem direito a um helicóptero.
Cada quintal do meu país é um pólo de desenvolvimento, e não precisamos de ninguém que nos obrigue a lutar pela revolução verde porque já percebemos que dependemos de plantas para viver. Neste meu país, um dia, aceitaremos que alguns moçambicanos venham viver para que percebam que a ideia de alteridade deve ser vivida com grandeza e não ser chutada como eles fazem com as leis que regem aquela sociedade que tem o Zumbo como destino. O meu país é um sonho onde vivem “divos” que acreditam que todos somos verdes, porque somos a esperança.
De repente, desperto por causa do barulho do cobrador que grita comigo: “Senhor, já chegámos. Pague!”. Eu, distraído, tiro da algibeira algumas moedas e pago por me terem levado do Dreve-In até ao Museu. Desço e passo pelas barracas do Museu para tomar aí uma sopinha na cantina da dona Eugénia. É assim mesmo, às segundas-feiras. Os homens resolvem os assuntos do fim-de-semana com alguns petiscos e uns tragos, aproveitando aquela promoção em que três unidades custam cem meticais.
Depois de terminar a minha sopa, percebo que estou solitário neste mundo. E aquela angústia inicial invade-me. Sinto-me isolado e percebo, agora, que eu sou o único culpado disso. Já não chove e eu continuo a andar. Ao caminhar, percebo que sou um eremítico e misantrópico porque descobri que sou a escória da humanidade. Sou um pecador em ascensão e não vejo formas de contornar isso. Eu devia ser extirpado da humanidade.
Na verdade, descobri que tenho uma doença – a autoflagelação. O que conquistei com muito suor e trabalho árduo destruo em fracções de segundos com o meu espírito que é assaltado, vezes sem conta, pela melancolia. Nunca pensei que fosse possuído pelo abatimento. Invoco todos os deuses, curandeiros, profetas, pastores – nada de me cobrar dízimo – para que, em uníssono, façam uma reza para eu melhorar o meu estado latente. Até penso em cometer suicídio, sim, como fazem os cansados da vida e da sociedade. Ou eu é que não compreendo os outros e a minha sociedade?
Aproximo-me do meu destino e a certeza de um dia mal começado quase que se concretiza. Já na porta do meu local de faina acontece o insulto: passa um carro a uma grande velocidade, esbarra com a água da chuva que está nas bermas da estrada e molha a minha roupa. Tento gritar para tirar um insulto, mas não consigo. As pessoas que estão ao redor olham para mim.
Algumas sentem pena outras ficam felizes. Dou razão aos que ficam felizes pelo desastre que tive: “Talvez estou a pagar pela minha arrogância”. Começo a pensar no seguinte: “Porque existem os dias de azar? Porque tenho mais momentos de tristeza e não de alegria? Acho que o que há-de acontecer connosco amanhã, devíamos prever como fazemos com a temperatura”.
Enfim, não desejo a ninguém o meu estado de espírito. Não quero que nenhuma pessoa se sinta a escória da humanidade como eu estou a sentir-me hoje. Quero apenas que a humanidade se sinta mais prestativa e que o sentimento que, hoje, me invade não chegue a nenhum ser igual a mim. Que todos nós busquemos sempre o melhor como sucede na Kelesalândia.
Cremildo Bahule