Ritmo morno, fala suave e lenta, mas incisiva. Tudo nele era solene. O andar, o falar, o desarmar e até o comemorar. Comedidamente. No interior das quatro linhas, funcionava como um GPS, uma placa giratória por onde o jogo deveria passar, para a alternância depois para os flancos, ou aproveitamento dos espaços vazios.
UM ESTILO EM EXTINÇÃO
Mário Esteves Coluna. Um nome sempre pronunciado com respeito, porque as atitudes e o estilo altivo do dono, de coluna sempre direita, assim o impunha.
Como meio-campista, a galeria de estrelas do seu nível é muito restrita, cabendo nela apenas jogadores como Didi, Beckenbauer e Platini. Uma espécie em extinção. A sua importância para o desenvolvimento do desporto-rei, foi reconhecida pela Federação Internacional de História e Estatística do Futebol, um departamento da FIFA que incluiu o seu nome como um dos 100 melhores jogadores do Século XX!
CAPITÃO E PROTECTOR
Nos dias que correm, pela Europa e pelo Mundo, a grande maioria das equipas queixa-se da quase ausência de jogadores com carisma, futebolistas “à Coluna”.
Era um falso-lento, com uma resistência a toda a prova.
Dispunha de uma apurada intuição para se movimentar junto à área adversária. Mas a isso se juntava o forte remate à meia distância, quase sempre com veneno ´´letal´´, que apenas dava aos guarda-redes a possibilidade de a irem buscar o esférico no fundo das redes.
Mas como capitão, coluna era um líder protector, que não admitia que ninguém crescesse para um seu colega. Nessas alturas, usava uma frase que intimidava os adversários: “Se tocas mais no miúdo, sais daqui com uma perna a lamber a outra”.
Aconteceu até frente a Pelé, quando um dia Morais se sentiu intimidado ao marcar o rei. Coluna foi-lhe dizendo: “Continua a jogar durinho, porque lá por ele ser chamado de rei, cá dentro não tem qualquer estatuto especial”.
O que é que torna este Monstro Sagrado assim tão carismático? Os 126 golos em 525 jogos oficiais com a camisola do Benfica? O facto de ser o jogador com mais jogos realizados com a braçadeira de capitão, de 1963 a 1970?
Será talvez um pouco de tudo, a partir da imagem de marca que trouxe do berço, que lhe conferia autoridade e liderança, tanto dentro como fora do campo. E, claro, a sua anormal resistência, pois quando a maioria dos colegas e adversários se encontrava “com a língua de fora”, ele impunha as suas regras.
O lado humorístico
Uma das formas de fazer soltar a língua a Coluna era espevitar o seu lado brincalhão. Aí vão algumas histórias:
– O Saíde Omar, questionou a designação de Monstro Sagrado a Mário Coluna. Isso entristeceu-o, mas “agarrou umas calmas”. Aquando do jogo Portugal-Moçambique, nos Açores, o Monstro deu entrada no Estádio, ao lado do presidente Madail e a ovação, frenética, durou, seguramente, 30 minutos.
Quando tudo serenou e já nos camarotes, fez questão de me solicitar: “Caldeira, agora vai dizer ao teu colega Saíde Omar, quem é, de facto, o Monstro Sagrado”!
– Bulgária 1980, com a selecção nacional. Em pleno jogo, os búlgaros descobriram Coluna na bancada, ele que há uns 20 anos “desgraçara” a representação máxima dos búlgaros. Foi uma festa, um conjunto de homenagens inesperadas.
Coluna não perdeu a sua fleuma, mas ia lançando umas piadas para Cremildo Loforte, seu adjunto na selecção. “Ó minhoca levanta-te comigo, que só assim vais ganhar uns aplausos na tua pobre carreira”.
– Chegados altas horas da noite a Lisboa com o Ferroviário, teríamos de dormir com o atletas no Centro de Estágio da Cruz Quebrada na primeira noite, apesar de haver um hotel reservado aos dirigentes. A decisão foi aceite por todos, menos pelo então presidente locomotiva Miguel Matabele.
Com a sua voz pastosa e sorrisinho malandro, o Monstro pegou o dirigente pelo braço e foi dizendo: “Presidente: durma na beliche de baixo para não cair, sob dois colchões, para se sentir como no Hotel Cinco Estrelas”.
E chegados às casas de banho: “xixi, cócó, pela noite, senhor presidente… é aqui”!
Nas Roménia, em socorro a Eusébio
Uma das poucas vezes em que perdi a cabeça
Um episódio inédito pois Coluna reconhece que perdeu a cabeça, e optou pela agressão, mesmo assim não sendo expulso. Mais uma vez, ao papel de grande capitão juntou o de justiceiro.
Tudo aconteceu na Roménia, num jogo difícil, em que Eusébio estava a “partir a loiça” sendo alvo de uma marcação dura por parte de um latagão que não dava tréguas, batendo forte e feio. A certa altura, o romeno pisou a Pantera Negra, que caiu e uma bota saiu-lhe do pé.
O latagão pegou na bota e tentou atirá-la para lá da vedação. Eu estava perto e segurei-a. Travámos uma pequena luta pela posse da bota e eu consegui arrancá-la. Ele preparou um escarro e cuspiu-me no rosto. Confesso que foi uma das poucas vezes em que perdi completamente a cabeça. Bati-lhe repetidas vezes na testa, com muita força, com a bota que tinha na mão, fazendo-o sangrar. O árbitro, um inglês, correu para o local já preparado para me expulsar. Mostrei-lhe o meu rosto cheio de ranho, misturado com saliva. O juiz raciocinou rapidamente, viu que humanamente a justiça estava feita, pois ninguém com a bota na mão resistiria à tentação de tirar desforço após uma baixeza daquelas. Retirou do bolso de trás um lenço, limpou-me a cara, e... mandou prosseguir o jogo sem me expulsar
Inspector benfiquista salvou-o
A milímetros das celas da PIDE
Praga, 1966. Eliminatórias da selecção portuguesa, para aquilo que viria a ser a maior epopeia lusa de sempre, com a conquista do terceiro posto no “Mundial”. Comunismo lá. Fascismo em Portugal. A desconfiança entre tudo e todos era total. “Por isso é que Salazar governou até á morte”. O Monstro esteve a milímetros de sentir na pele aquilo que já havia acontecido ao seu colega Santana e a Daniel Chipenda: a estada nas masmorras da PIDE. Uma circunstância feliz salvou-o:
Essa história da PIDE tem a ver com uma viagem à Checoslováquia. Jogo difícil, em que alinhámos muito tempo com menos um jogador e rendemos até aos limites. Mas antes, apareceram-nos no hotel alguns estudantes angolanos, pediram convites, pois a ideia era apoiarem a selecção portuguesa.
Coluna, como capitão, reuniu os ingressos que os colegas não precisavam e ofereceu-lhes. Nada mais do que isso. A vitória por 1-0, com golo de Eusébio foi memorável. E deu direito a festa, em pleno cenário comunista numa casa alheia, episódio inofensivo e fugaz, rapidamente esquecido.
Só a PIDE não estava de acordo. Algum acompanhante/infiltrado viu nisso um pactuar com os terroristas. Chegados a Lisboa, dias depois, o Monstro recebia uma convocatória para ir à PIDE. Algum engano? Não fazia a mínima ideia do que se tratava, mas a verdade é que os seus pés já não se deslocavam com a segurança com que o faziam na relva, o seu reino.
Num “terreno” desconhecido e hostil, de pergunta em pergunta, lá chegou a um gabinete guardado à porta por dois “caras-de-pau”, um de quase dois metros e o outro, de barriga avantajada, com não menos de 90 quilos. Ambos dirigiram um ar de poucos amigos ao recém-chegado, “borrifando-se” (talvez por desconhecimento), no seu estatuto.
Mandaram o Monstro entrar para o gabinete para as formalidades que o conduziriam à cela PIDESCA. O inspector que o atendeu era benfiquista e seu admirador. “Olha o Mário, meu grande capitão. O que o traz por cá? Com a habitual calma mas com o coração aos pulos mostrou o impresso que o convocava. Finalmente, fez-se luz.
“Você teve sorte por eu estar de serviço. Com outro colega, esses dois jagunços aí à porta receberiam ordens para o levar aos calabouços”.
O impressionante BI do homenageado
Mário Esteves Coluna nasceu a 6 de Agosto de 1935, em Magude. Começou a jogar a ponta de lança, para mais tarde passar a actuar no meio-campo. Em Moçambique, jogou no João Albasini e no Desportivo de Lourenço Marques. Na Europa, actuou no Benfica, de 1954 a 70; fechou a sua carreira no Olympique de Lyon, em1971.
Nas 16 temporadas na equipa principal do Benfica, participou em 677 jogos, num total de 59.702 minutos, marcando 150 golos. Ainda hoje, é o futebolista que mais vezes capitaneou a equipa encarnada: 328 jogos. Foi 10 vezes campeão português (55, 57, 60, 61, 63, 64, 65, 67, 68, 69).
Venceu seis vezes a Taça de Portugal.
Foi bicampeão europeu pelo Benfica (61 e 62) e três vezes finalista vencido (63, 65, 68).
Actuou 60 vezes pela selecção portuguesa, tendo sido capitão em 21 jogos. O ponto mais alto foi o 3º lugar, no “Mundial” de Inglaterra, em 1966.
Realizou 60 jogos (com 11 golos) na Taça dos Campeões Europeus e dois na Taça UEFA.
Capitaneou a selecção da Europa frente ao Resto do Mundo.
Como treinador: Orientou as equipas Sport Lisboa e Huambo, Textáfrica do Chimoio, Ferroviário de Maputo, Maxaquene, Desportivo de Maputo e Ferroviário da Beira. Foi seleccionador nacional de Moçambique.
Distinções: Sete louvores da Federação Portuguesa de Futebol: Medalha de Ouro ao Mérito Desportivo, Medalha de Prata da Ordem do Infante D. Henrique (a mais alta condecoração portuguesa), pelo brilhante comportamento no Campeonato do Mundo de 1966. Louvor da Direcção-Geral dos Desportos, em atenção a toda a sua exemplar carreira desportiva, e Medalha Nachingweia.