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Kerygma: Danças urbanas com Lulu Sala – Escrito por Cremildo Bahule

Há anos que venho a ensaiar para te escrever esta carta. A minha timidez, perpetuamente, mimoseia-se na minha ignorância e pequenez perante um modelo artístico que todos conhecemos, mas que poucos de nós fazem com lucidez: a dança. Todas as pessoas regamboleiam e fazem dois passos para trás, um para frente e outro para a esquerda. Alguns, quando dançam demonstram, propositadamente, os seus problemas de coordenação motora.

Gosto de mulheres com um traseiro corpulento e cujo andar é um baile. Algumas abanam-no, propositadamente, para fazer as pessoas, como Bahule, tombar. Por exemplo, o meu amigo, Nelson Seabra, quando dança levanta a perna esquerda e a mão direita em simultâneo. Nenhuma mulher, nas festas e discotecas, aceita dançar com ele, pois continuamente pisa nelas e, algumas vezes, dá rasteiras nas meninas. O outro é Adriano Uaciquete. Este, quando dança, confunde-se com um papel a levitar. Uaciquete é o protótipo de quem não sabe dar gosto ao pé. Eu danço sentado e sei bater palmas.

Contigo, Lulu Sala, é diferente. Tu és abençoado. Encontraste essa arte do bailado e ela aceitou-te. E juntos têm, até hoje, um amor dos deuses. Vi alguns dos teus momentos de baile, quando ainda estavas na Companhia Nacional de Canto e Dança. A minha tia Anita, casada com o meu tio George Bahule, sempre te admirou e dizia: “Lulu Sala é a nova forma de se fazer dança em Moçambique. Eu amo aquele jovem. Ele é a minha massala doce”.

Espero que o meu tio não descubra isso. Obviamente, sempre estiveste rodeado de pessoas como o Augusto Cuvilas e o Casimiro Nyussi, as grandes escolas do bailado moçambicano. Nas danças tradicionais, sei que te inspiraste, e recorrendo à ideologia da desenxabida – forma acrobática que te caracteriza – e da dança charleston criaste muitas coreografias que, com o tempo, ganharam força, engordando o repertório da Companhia Nacional de Canto e Dança que é a nossa bandeira quando falamos sobre bailado em Moçambique. Graças ao teu empenho, conheceste o mundo, até o dia em que decidiste voar. Voas tanto que muitos concidadãos não sabem que és um guru na dança.

Actualmente, tens a tua própria escola de formação em dança e as tuas coreografias são contemporâneas. Estou consciente de que nunca serás como Mikhail Baryshnikov. Contudo, sinto-me feliz por saber que és um dos timoneiros da dança contemporânea em Moçambique, ao lado de coreógrafos como Virgílio Sitole, Macário Tomé e Maria Helena Pinto. Da pequena apresentação que tens feito, nos últimos tempos, apercebi-me de que estás a sedimentar a lógica da dança urbana. Por exemplo, a última coreografia que vi, montada por ti, no Centro Cultural Franco-Moçambicano, apercebi-me de que os teus bailarinos estão espiritualmente ligados ao “locking” na sua forma de dançar.

Agora mesclas o tradicional com a dança de rua e, de forma clássica, relacionas o movimento dos corpos com as movimentações rápidas dos braços em música Funk e Rap. Vejo movimentos de um “travar” os joelhos, produzindo a impressão de uma ruptura, congelando em certas posições e depois continuando rápido como antes. Nas tuas coreografias, os teus bailarinos interagem com o público animado, apontando os dedos e batendo as palmas, podendo ou não caracterizar-se como a época dos cafetões que, usando boinas, coletes, suspensórios e meias grandes, e faziam das vestes uma indumentária que se combina com a dança.

Porque não tens o controlo total dos teus bailarinos, percebe-se uma certa improvisação. Desse modo, a improvisação é o elemento que se consolida nesse estilo de danças urbanas. O desafio e a provocação também são utilizados, pelos praticantes da dança, como uma forma de duelo, uma batalha de movimentos. Não se pretende ter um vencedor, pois o bailado é em conjunto embora, por vezes, não pareça. O interessante é o jogo entre os dançarinos, um jogo de pergunta e resposta, em que o movimento é o vocabulário utilizado.

Estando ou não dentro de uma sala, sei que, por vezes, não és compreendido. Numa época em que se discute a preservação das danças tradicionais, tu apareces com coreografias onde a cultura Hip Hop é uma marca dos teus bailados. Não será o Groove Buvuka Roots – The Voodoo que te atrapalha? Em alguns círculos, as pessoas caracterizam a tua dança como sendo elitista. O que não alcançam é que a tua intenção é levar a dança de rua para o palco.

Poucos percebem que a dança de rua é tanto estética como social. Uma cultura popular plural que, quando analisada por via estética, causa estrondosas definições pois a dança de rua, tal como os seus praticantes, tal como a cultura popular, está a inter-relacionar-se o tempo todo, num processo incessante de apropriação e incorporação, recusa e assimilação, consumindo e produzindo a dança. Diante dessa realidade, segundo o teu ideal, percebe-se que é quase impossível manter uma manifestação cultural congelada no tempo.

Acredito que, um dia, te compreenderão. É necessário que as tuas coreografias mostrem as tuas influências. O legítimo das danças urbanas é a capacidade de absorver as características das danças tradicionais moçambicanas, de outros bailados da cidade, porque as primeiras estão ligadas às últimas. Sei que pesquisas o que coreografas e vejo a “dupla identidade” que tentas impor nos teus bailarinos: fazer o contemporâneo sem esquecer de conceber o tradicional.

Uma aspiração: que as danças urbanas, como manifestação popular, te possibilitem, primeiramente, fazer com que os jovens que frequentam a tua escola encontrem novas alternativas de acesso a espaços urbanos mais centralizados. E que, em segundo e último plano, a partir da prática da dança incorporem hábitos, crenças e valores, construindo e apropriando-se de significados que estão patentes nas danças tradicionais de Moçambique.

P.S.: Um abraço aos teus amigos: Mauro Pinto, Gonçalo Mabunda e Sininho Paco.

 

Escrito por Cremildo Bahule

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