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Toma que te dou: Ele não “bate cem”

Cumprimenta toda a gente com um sorriso de orelha a orelha, como se alguma vez tivesse compartilhado momentos com as pessoas com as quais se vai cruzando nas ruas desta cidade destinada a andar ao relatim.

Está sempre bem disposto. Jovial. Desmente constantemente aqueles que, sem a coragem de o dizer abertamente, afirmam por debaixo da mesa que este homem é petulante, faz aqueles salamaleques todos porque quer mostrar o fato que veste, e os sapatos sempre engraxados e polidos. Dizem ainda, outros, perante a saudação desinteressada desta figura humilde e solitária, que ele não “bate cem”.

Já ultrapassou a casa dos setenta, contrariando uma compleição física incólume. O cabelo, mais de prata do que branco, cobre-lhe a cabeça bem talhada, em cuja testa se adivinha um homem inteligente. Caminha despreocupado, vai-se espelhando nas montras gradeadas das poucas lojas que sempre existiram por aqui. Não traz nada nas mãos, senão uma bengala de madeira de sândalo, que vai espalhando o seu perfume natural por onde passa. É um homem intemporal, porque aqueles que o conheceram na infância dizem que foi sempre assim, cordial, asseado, educado, cavalheiro. Pronto, em todo o momento, para vestir a pele do bom samaritano.

Muitos já tentaram ouvir dele alguma palavra, e isso nunca aconteceu. Os vizinhos jamais escutaram vozes dentro da sua casa onde vive sozinho, desde que os pais morreram num naufrágio quando ele tinha 20 anos. Os seus antigos colegas bancários dizem que, durante o trabalho, ele falava apenas o necessário. Sabia ouvir e respeitar a todos dentro da instituição, mas não falava, ou, se falava, as palavras eram austeras o suficiente para deixar clara a mensagem. Se alguém a ele se dirigisse e fizesse uma pergunta que exigisse resposta, analisava rapidamente a questão e, se as palavras fossem desnecessárias, abanava a cabeça, ou em sinal de anuência ou de reprovação, mas sempre com um sorriso nos lábios.

Era o único funcionário do seu tempo que mudava de fato e sapatos todos os dias. Os que trabalharam com ele afirmam que tinha mais de trinta conjuntos, cada fato com a sua gravata, com a sua camisa, e com o seu par de sapatos, com sola sempre nova. Era um gentleman, um senhor que fazia inveja pela postura que tomava perante o trabalho e perante a vida. Depois da actividade laboral, que terminava para além das 17.00 horas, passava pela esplanada da sua eleição e bebia um café e um copo de água.

Todos os que passassem por ali olhavam para ele como se estivessem a contemplar uma estrela. Saudavam-no e ele correspondia abanando a cabeça e sorrindo. Sem palavras. Bebia o café e a água e ia-se embora, sem dizer nada. Os empregados de mesa, quando ele chegasse, já sabiam o que ele queria. Corriam a limpar a mesa e a servi-lo com esmero. Era respeitado. E hoje há quem diga que ele não “bate cem”. Qual?!? “Bate cem”, sim senhor! O que acontece é que ele nasceu para viver distante de nós. Provavelmente não seja deste chão. Provavelmente ele estará a dizer para nós, “estes tipos não batem cem”.

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