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Toma que te Dou: Um demente no “chapa”

“Chapa” é a designação que os moçambicanos dão aos autocarros semicolectivos que fazem o transporte urbano e interurbano de passageiros. E o resto é aquilo que todos nós sabemos: velocidade de morte, manobras irresponsáveis, superlotação, subornos aos polícias e, no fim de tudo isso, o caos.

Chove lentamente como o faz sempre por sobre a casa construida pela mão de Deus no cume do monte Sião, mas chuva é chuva, mesmo caindo com suavidade, vai-nos molhar. Como agora que cai no corpo de um homem que se recusa a tornar-se albufeira. Ele está completamente ao relento, exposto a tudo o que as águas despejadas pelas nuvens quiserem fazer dele.

Mas também está determinado a contrariar o desejo não se sabe bem de quem, se de Deus ou do abominável diabo. Tenta tapar o couro cabeludo com as mãos e percebe logo que a acção será por demais inglória. Despe a camisa – larga – e cobre a cabeça como se estivesse encapuçado. Mesmo assim a solução não está encontrada.

As gotas celestiais perfuram o tecido como a água mole que cai por sobre a casa construída no cume do monte Sião e atingemlhe o cabelo. Descem em silêncio pelo rosto até lhe atingirem a cútis, depois os membros inferiores até os pés. Estou entre um magote de gente na praça dos autocarros em Inhambane e contiunua a chover sem pressa. Somos absolutamente arrebatados pelo espectáculo que nos é oferecido. De graça. E, perante tremendo surrealismo, não há comentário que se faça.

O homem retira o capuz, molhado, e dependura-o negligentemente no ombro esquerdo. O seu peito e os músculos dos braços são espectaculares. Parece um halterofilista. A pele, escura, brilha inexplicavelmente e dá a sensação de um mármore escuro por sobre a qual as águas vão tentar inventar um rio. Ele remexe os genitais sem sair do lugar onde está desde que começou aquela encenação artística. Vira a cabeça para todos os lados da bússola e passa para outra etapa.

Os “chapas” – uns – vão chegando e outros vão partindo para destinos como Praia do Tofo, Praia da Barra, Guiúa, Nhaposssa, Inharrime, Cumbana. Mas cada vez que os pequenos autocarros saem e chegam, parece haver mais espaço na varanda onde nos protegemos da chuva. As pessoas não acabam. Saem do alpendre e entram outros. Cada um deles tem o seu programa estabelecido. Tem a sua pressa. Menos eu, que posso ficar ali até ao fim de tudo. Quero ver o desfecho que este homem, literalmente encharcado, nos vai oferecer.

Não pára de chover. Devagar. E o homem cumpre com o guião escrito. Dirige-se lentamente, como a própria chuva, para um “chapa” prestes a partir. Entra e sentase na cadeira do condutor que ainda bebia um refresco na Frescata do João. Acaricia o volante. Faz um exame prolongado aos pedais e volta à posição normal.

Os passageiros que ocupam os seus lugares à espera do motorista estão mais estupefactos do que com medo. Divertem-se com o personagem libertando fortes indícios de demência que vai ao volante. E este, ouvindo os gracejos que saem das pessoas no interior da viatura e fora desta, empolga-se. Vira o leme para a direita e para a esquerda. Olha para o retrovisor. Buzina com a boca, pimpiiiimmmpimmmmm! piiimmpimmm! pimmmmpimmmm! Imita o som do motor do carro , vuuuummmmmm! Vuuuummmmmm! Vuuuuuummmm!

O demente está a “viajar”. Os passageiros também viajam com o demente. Os polícias camarários e de Protecção, chamados para acudir à situação, também se divertem. Viajam também. Não accionam qualquer meio de coacção. Riem-se à larga. E o homem também se ri. Agradece a Deus pela plateia que o recebe. Que o aplaude. E os agentes da autoridade não o molestam.

Continua a chover mas já ninguém se apercebe desse fenómeno natural. O centro das atenções é o homem que vai ao volante. Todos estão entregues à festa que lhes é oferecida por alguém que conduz a alta velocidade: Pimmmmmpimmmm! Pimmmmmmmpimmmm! Pimmmmmpimmmm! Vummmmmmmm! Vummmmmmm! Vummmmm!

Parece mentira. Quando a chuva parou, o ilustre actor abandonou a viatura. E houve uma estrondosa salva de palmas!

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