Porque é que esse rapaz não dorme agora? – pergunta ele esconjurando a rede social – Maldito Facebook!
Ninguém irá acreditar, mas, de facto, os meus livros – aqueles que eu possuo, não que os tenha escrito – são os mais importantes de todos os que existem no mundo. Quem quiser venha roubá-los. Enricará!
Quando não os leio, eles julgam-me. Questionam-me as razões da minha apatia à leitura. Dialogam comigo. Mostram-me soluções para os problemas do quotidiano. Enriquecem as teorias que orien- tam a minha acção diária, mesmo que, muitas vezes, agindo sem a consciência disso.
Talvez seja por todas as razões recém-apresentadas que nesta noite – no meu quarto – tenho um hóspede. Um fulano-ladrão-de-livros. Embora não consiga vê-lo – sei que ele está aqui. Porque, por esses instantes em que ele quer materializar os seus planos, me tornei invisual. É como se ele fosse invisível, mas – como eu – também é material. Encarnou-se num bicho nojento, um rato, e está a puxar um dos meus livros. No arquivo.
Com um livro a menos, na minha estante, eu fico pobre. Nunca conseguirei enricar, porque a minha ‘enricação’ depende da colecção de livros e do seu consumo da minha parte. E ele – o fulano-ladrão-de-livros – não me quer ver rico. Inibir o meu enobrecimento intelectual é a sua aventura. Mas, também, é muita maldade sua.
Neste momento, nesta noite, em que escrevo estas linhas – ainda que eu não o possa ver – o fulano-ladrão-de-livros está tramado porque eu acordei para vigiar o meu espólio livresco.
E qualquer movimento seu, suspeito, receberá um golpe imediato, fatal e – segura e positivamente – ele morrerá. Pelos meus livros, aceito, vou perder uma noite. A luz do meu quarto já está acesa, o que limita as acções do fulano-ladrão-de-livros. É como se eu lhe tivesse dado um golpe nefasto na membrana cerebral.
Já falei, inclusive, com Jeová o meu Deus para me auxiliar nessa vigia. E, ao que tudo indica, o Senhor Divino escutou as minhas preces. O Seu Espírito Santo – a Sua Força Activa – está a agir, neutralizando as acções do infractor.
Mas como é que uma pessoa, ávida em enricar (nessa via por mim escolhida), no lugar de pedir emprestado, prefere incorporar-se num rato, numa barata, ou em qualquer-outro-bicho-nojento, a fim de entrar no meu quarto – à noite, enquanto eu estiver a dormir – para furtar os meus livros? Vejam só o que aconteceu: eu, repórter sociocultural deste país, sou impelido a cobrir e publicar em tempo real o furto dos meus livros.
Neste momento, a luz que se mantém cintilante enerva o fulano-ladrão-de-livros: “Porque é que esse rapaz não dorme agora?” – pergunta ele esconjurando a rede social – “Maldito Facebook!”.
De repente ele – o rato, a barata, o sapo, sei mais em que outros bichos esses indivíduos se incorporam para se tornarem no fulano-ladrão-de-livros – arrasta um manual com muita força. Gera um barulho incómodo, mas eu não me movo. Mantenho-me sereno, a tomar notas, que, em tempo real, são publicadas na rede social excomungada.
A minha parceria com Deus está a tramar os planos do fulano-ladrão-de-livros. Deus encorajou-me e eu estou forte. Por um livro vou perder esta noite – sou peremptório. Abaixa o retardamento do meu ‘enricamento’.
É que, na verdade, ao vigiar o meu livro, estou a guarnecer o meu tesouro. Fiquei a saber que a minha riqueza depende da colecção e consumo de livros. Da posse de uma arquivo bem organizado. É, também, com base numa cultura arquivista que se avalia o desenvolvimento de uma sociedade. Aprendi isso nas ciências arquivísticas e na documentação.
Na verdade, ninguém me disse que a minha riqueza dependia da posseedoconsumodelivros.Constatei! Porqueéque,nolugardas tantas bugigangas que eu tenho nesse quarto, o fulano-ladrão-de-livros só quer pilhar os manuais?
Diferentemente de muita gente – nesta corrida à riqueza – penso que sou privilegiado. Descobri! Tenho a consciência de um facto – para enricar não preciso de roubar, corromper muito menos matar humanos. Apenas, preciso de cumprir um dever – ler livros o suficiente e continuamente.
Ler é o que estou a fazer, mas, para fazê-lo da melhor forma possível, preciso de me rebelar contra o fulano-ladrão-de-livros – a não leitura. Livros conservados, não explorados, correm esse risco – serem roídos por bichos nojentos.