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Infância acorrentada e futuro hipotecado

Infância acorrentada e futuro hipotecado

Diante da súbita morte dos seus progenitores, ao contrário do seu irmão que foi adoptado, Filimone não teve a mesma sorte. Com apenas 11 anos de idade e sem nenhuma fonte de rendimento, quiseram os insondavéis desígnios do destino que o petiz tivesse a difícil missão de cuidar dos seus dois irmãos mais novos.

De referir que apesar de tão pequeno já carrega nas costas as responsabilidades que muitas pessoas adultas optam por negligenciar. Eis o drama de uma criança que vela por outras crianças desamparadas na cidade de Nampula.

Pele escura, olhar insuspeito e vazio – o mesmo vazio a que está acostumado a ver nas duas únicas panelas de casa na hora da refeição – e rosto de quem muito cedo conheceu o lado mais amargo da vida. Pés descalços e vestimenta encardida pedindo substituição.

A personagem descrita nas primeiras linhas chama-se Filimone Artur, tem apenas 11 anos de idade e cuida dos seus dois irmãos, Benaldo e Aidinha, de sete e cinco anos, respectivamente. Eles vivem numa casa com três cómodos no quarteirão 29 da Unidade Comunal Cossore, arredores de Nampula.

O dia nem sequer começou, o pequeno Filimone já limpou o quintal e o interior da casa. Sentando rigidamente numa banco de madeira, o petiz tem os olhos fitos num punhado de pratos e panelas. Com uma esponja na mão, esfrega sem sabão aquilo que compõe a loiça da família.

Fazer as tarefas domésticas não é a sua única responsabilidade. Além disso, ele é responsável pelos seus dois irmãos mais novo. No princípio eram quatro, porém, um teve a sorte de ganhar uma família e um lar, ou dito sem metáfora, foi adoptado.

A história de Filimone e os seus irmãos começa com o súbito falecimento dos seus pais, vítimas de doença. Sem ninguém para cuidar delas, tiveram de aprender a desenrascar a vida. Desde então a vida deles foi pautada por episódios de privações a todos os níveis, ou seja, a morte dos seus progenitores deixou-os com um grande problema: comer.

No início os menores viviam numa cabana sem tecto e, muito menos, condições de sobrevivência, o que os obrigou, com a ajuda de algumas pessoas próximas, a venderem uma parte do seu espaço para comprar comida e roupa. Mas o dinheiro acabou e voltaram para o mesmo drama de falta de alimento.

Vezes sem conta, eles recebiam visitas de pessoas desconhecidas, ou seja, os pequenos eram amedrontados por indivíduos de má-fé que queriam apoderar-se do terreno herdado.

“Alguns vizinhos chegaram a obrigar as crianças a venderem aos pedaços o lugar que os seus pais deixaram. Esses miúdos dispunham de um terreno enorme, mas hoje eles têm apenas este exíguo espaço porque algumas pessoas de má-fé se aproveitaram da ingenuidade dos petizes”, disse uma vizinha que não quis ser identificada.

Depois da morte dos pais, nenhum parente dos seus progenitores se aproximou e tão-pouco ofereceu-se para cuidar dos miúdos. Filimone, na altura com menos de sete anos de idade, teve de ser pai e mãe dos seus próprios irmãos.

Os petizes sobreviveram durante quatro anos sozinhos à mercê das sobras dos vizinhos e do que os pequenos negócios que faziam pelas ruas da cidade de Nampula podiam dar. Mas a vida começou a mudar nos princípios de 2011. Ao contrário dos anos passados, hoje eles conseguem ter, pelo menos, uma refeição por dia.

Presentemente, os petizes moram numa habitação precária (mas melhor do que a anterior) construída no ano passado pela comunidade cristã da Igreja Católica São José, depois de o seu caso ter chegado ao conhecimento da Comissão da Ajuda Fraterna daquela congregação religiosa.

A reacção dos crentes não se fez esperar, e hoje têm vindo a apoiar, com alguma frequência, aqueles petizes a romperem as barreiras da falta de condições básicas para a sua sobrevivência. Alimentação, vestuário e outro material de quqe necessitam fazem parte da ajuda que, de vez em quando, Filimone e os seus irmãos recebem.

Quando a situação dos miúdos começou a sair da precariedade, subitamente um indivíduo de nome Assane Artur Manuel, de 19 anos de idade, veio instalar-se, com a sua esposa, na casa dos petizes alegando ser irmão legítimo de uma daquelas três crianças orfãs, facto que enche de dúvidas a comunidade cristã de São José, que presta assistência àqueles menores, e os vizinhos.

O facto está a preocupar os crentes e alguns moradores de Muatala porque estes acreditam que o referido fulano e a sua mulher se querem aproveitar dos miúdos por estarem a receber donativos, uma vez que ambos não trabalham e nem se preocupam em arranjar uma ocupação.

“Quero ser doutor, quem me ajuda?”

Conversámos com as três crianças orfãs de pai e mãe. Os petizes falam do sofrimento por que têm vindo a passar. Eles ainda não têm conhecimento da morte dos seus pais. “Se a mamã voltar, não vamos sofrer mais. Vamos ter roupa, comida, sacolas bonitas e lanche para levar para a escola”, disse, na inocente ilusão, Filimone Artur, que frequenta a 4ª classe na Escola Primária e Completa de Cossore.

Ainda não sabe ler e, muito menos, escrever, aliás, apenas consegue rabiscar o seu próprio nome. Porém, como toda a criança, tem um sonho. “Quero ser doutor. Quero estudar e ajudar os meus irmãos”, afirmou acrescentando que faz muito tempo que não vê os seus pais: “Não sei para onde foram e não tenho ideia de como eles são, o que sei é que faz tanto tempo, passamos dias ao sol e à chuva, sem banho e nem roupa para vestir. Estou à espera de eles chegarem”.

O pequeno Filimone ficou durante muito tempo sem tomar banho. Não ia à escola, pois tinha de ganhar o sustento diário para os seus irmãos. Com cinco anos de idade, não sabia como cuidar dos mais novos.

Quando estes faziam as necessidades maiores nos calções, ele desfazia-se da roupa deles. “Quando era para tomar banho recorríamos ao rio Namavi (localizado aproximadamente a 600 metros da sua casa). Na maioria das vezes, erámos obrigados poruma senhora que cuidava da nossa irmã”, contou.

Questionámos sobre como era a sua rotina desde que os país “saíram” de casa, e ele contou que já tentou viver na rua, mas foi agredido fisicamente por outros meninos mais velhos e acabou por voltar para casa para cuidar dos seus irmãos. Filimone avançou que houve uma altura em que não tinham o que comer e, muitas vezes, recorria às lixeiras do bairro nas quais conseguia obter alimentos, roupa e calçado.

Benaldo frequenta a 1ª classe e a irmã Aidinha ainda não vai à escola por ser de tenra idade. Benaldo disse, em conversa com o @Verdade, que no princípio não tinham o que comer, mas hoje pelo menos têm uma refeição por dia. “Todos os dias comemos xima com ‘papaím’ (peixe seco). Nunca comemos arroz com carne, como na casa de João”, disse.

Benaldo e Aidinha são duas crianças sob a responsabilidade de Filimone que ainda, apesar de terem alguma noção sobre as dificudades por que passam, levam a vida normalmente como se estivessem a viver com os seus pais.

Quando perguntámos a Benaldo sobre o paradeiro dos seus progenitores, ele respondeu: “Titios disseram que eles viajaram e voltarão a qualquer hora”. Já Aidinha, quando tentámos conversar com ela, limitou-se a pedir-nos para lhe compramos uma sacola, roupa e cadernos.

Quem são estas crianças?

A nossa reportagem procurou Fernando Alberto Box, responsável da Comissão de Ajuda Fraterna da Igreja São José, a nível cidade de Nampula, que tem vindo a ajudar aquelas crianças orfãs e vulneráveis. Box afirmou que a descoberta daqueles três menores de idade foi possível graças a uma senhora que as tem ajudado, oferecendo refeições e vestuário quando pode.

“Quando a comissão soube da situação, foi ao local e descobriu quatro crianças que viviam ao relento, tendo ajudado na construção de uma habitação, embora precária”, disse para depois afirmar que a vida daquelas crianças era de lamentar, mas hoje elas têm alguma assistência, apesar de não ser satisfatória.

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