Além da discriminação, da estigmatização, entre outros tipos de ostracização por que alguns jovens moçambicanos passam no espaço social, a ignorância (total desconhecimento do objecto) por ínfima que seja pode ter efeitos desastrosos. O artista suburbano Fig Della Virgem – o suposto autor moral e intelectual do projecto Basket Show – é o exemplo de uma experiência assustadora.
Qualquer pessoa que, por qualquer razão, fizer uma viagem no bairro suburbano de Maxaquene ? no distrito municipal de KaMaxaquene ? e, minuciosamente, reparar nalgumas vedações residenciais irá perceber que as mesmas foram transformadas em murais de obras de arte. Nalgumas zonas, as imagens e mensagens cravadas a partir de trabalho gráfico modificaram a fisionomia local.
Poucas pessoas percebem a transformação, muito menos a sua motivação e finalidade. No entanto, quando se pensa nas razões que moveram determinada pessoa a desperdiçar os seus recursos (financeiros e materiais) para cravar mensagens em paredes alheias, o assunto torna-se sério.
Ganha-se a consciência de que “do nada, nada vem”. Por isso, por mais que não se saiba quem é o autor de tais caricaturas, belas imagens e/ou obras de arte que possuem o mérito de não somente terem modificado a fisionomia local, acrescentando valor na forma como os maxaquenenses se relacionam com o (novo) aspecto físico do bairro, a verdade é que o seu mentor, Fig Della Virgem tem profundas razões para assumir esta postura.
Durante muitos anos, a criminalidade, os problemas de saneamento do meio, a prostituição, entre outros males que ? infelizmente ? popularizaram o bairro de Maxaquene pela negativa valeram a Félix Salvador Monjane (ou simplesmente Fig Della Virgem), um dos residentes nativos, uma série de actos discriminativos, pejorativos, de estigmatização, bem como de marginalização no meio social, sobretudo no centro da cidade de Maputo.
Fig é um artista multifacetado, qualidade que só tardiamente, na passagem da sua adolescência para a juventude, descobriu. Facto curioso é que foi nos maldizeres com os quais algumas pessoas ? sobretudo jovens ? que residem no centro de Maputo se referiam ao subúrbio, onde vive que se originou a sua criatividade artística. A sua história não difere da máxima “sofrimento na cidade aumentou a criatividade”. Mas leiamos sobre como tudo começou.
Quando a cabeça vazia se torna a oficina do diabo
Há 10/15 anos nós, os jovens estávamos mais entregues às actividades desportivas, recreativas e culturais, o que noutras palavras significa que apesar de alguns casos notáveis de desvio padrão como o consumo do álcool, actos de roubo domésticos perpetrados por pessoas de má-fé, a nossa experiência impele-nos a afirmar em Maxaquene tínhamos muitas ocupações salutares.
No decurso dos anos 1995/2000, nesta região de Maputo como noutras, começaram a proliferar estabelecimentos comerciais de álcool. De certa forma, os jovens foram inibidos de praticar desporto como consequência da reabilitação de alguns complexos desportivos. O álcool foi glorificado como acontece nos dias actuais sobretudo na imprensa audiovisual. Instalou-se a confusão.
“Como ocupar a mente da juventude com uma actividade salutar?”, é a questão na qual a sociedade ? digamos, líderes comunitários, as instituições células do Governo ? pouco (ou mesmo não) pensou.
“Entre os anos 2004 e 2005 participei numa reunião do bairro em que os jovens foram acusados e criticados por serem alcoólatras, assim como pelo facto de não se fazerem presentes nos encontros sociais”, recorda Fig Della Virgem. Procurando perceber as causas do referido cenário, este jovem artista compreendeu que “nós, quando mais novos, tínhamos infra-estruturas sociais para diversão”.
Com o passar do tempo, tais espaços desapareceram. Outros ainda transformaram- se em estabelecimentos comerciais, o que fez com que no caso do desporto, “passássemos a praticá-lo nas escolas. Apesar de que isso tinha a limitação de que só podia ser feito nos fins-de-semana”.
Basta ter-se em conta que “a direcção da Escola Secundária do Noroeste 1, por exemplo, criou torneios de futebol que envolviam os alunos durante o fim-de-semana”.
No grupo aludido, “os alunos integrados no programa escolar (extra-curricular) caso se associassem aos jovens do bairro sucedia que o campo da escola não conseguia responder à demanda. As equipas eram muitas. Então nós, os jovens do bairro, passámos a ser marginalizados”. Mais um problema acabava de ser criado no subúrbio.
Qualquer pessoa, como aconteceu com Fig Della Virgem, podia perceber que aquele fenómeno ocorria porque no período das aulas todos os jovens ficavam ocupados. No entanto, nas férias os “mesmos jovens não tinham nenhuma ocupação salutar”. Consequentemente, “começaram a envolver-se no consumo do álcool, na embriaguez desmedida, na prostituição, entre outras actividades ínvias”.
O cenário ficou agravado depois da reabilitação do Estádio 1º do Maio o único campo que, no bairro de Maxaquene, acolhia os populares para a realização de torneios desportivos. É que, uma vez concluída (?) a reabilitação do campo, os jovens foram vedados à sua utilização. Afinal, o campo passou a responder às competições oficiais.
Como tal, reduziu a produtividade de jogadores talentosos em resposta à “reduzida prática da modalidade. Recordo-me de que podemos citar nomes como os de Wisky, Aníbal, Josimar, entre outros jogadores geniais que se formaram no campo do 1º do Maio”, diz.
De uma ou de outra forma, “porque depois de o campo ter sido reconstruído não podíamos mais utilizá-lo, passámos a deslocar-nos ao Campus da Universidade Eduardo Mondlane com a finalidade de explorar os complexos desportivos da Académica.
Mas dado o facto de os jovens dos bairros arredores da universidade explorem os mesmos campos, a superlotação que a nossa presença criava originava divergências”. Foi assim que, “movido pela falta de rodagem nas actividades desportivas, na minha opinião, se acentuou o índice do consumo de bebidas alcoólicas, assim como da prática da prostituição”.
Basket Show para suavizar o problema
Inconformado com o cenário habitual na altura, Fig Della Virgem começou a procurar mecanismos de fazer a gestão do tempo dos jovens no período das férias escolares. Inspirando-se no projecto Bebec, bem como na Liga das Escolas criada pela empresa Coca-cola, desenhou mais um movimento desportivo que associasse a música, o entretenimento, a juventude, a educação e a cultura no mesmo espaço. Assim surgiu o conceito Basket Show.
“Criei este projecto no ano 2005, mas só fiz a sua submissão à empresa Moçambique Celular no ano seguinte. Em princípio fui àquela empresa com a finalidade de travar uma conversa com o director dos Recursos Humanos com o objectivo de perceber, como é que funcionava o sistema de submissão de projectos o que, categoricamente, me foi dificultado. Afinal, ele não era meu familiar”, enfatiza Félix.
E mais, sucedeu que o pessoal da recepção da Moçambique Celular “me perguntou sobre o assunto que eu pretendia tratar com o director. Expliquei-lhe que pretendia submeter um projecto. Recomendaram-me que deixasse os documentos com a recepcionista, que ela se encarregaria de dar o devido destino.
Fig Della Virgem acredita que o seu maior problema que, naquela época, originou o seu maior erro foi a falta de conhecimento em relação ao Registo da Propriedade Intelectual. Até porque, segundo conta, “na ocasião não havia muita divulgação dos registos de marcas, de obras, bem como da Propriedade Intelectual”. Como tal, “eu não detinha o conhecimento sobre como devia proceder. Apenas possuía (boas) ideias e iniciativas”.
A frustração
No entanto, um ano depois da criação do projecto, em 2005, “sucede que vejo a iniciativa a ser promovida na estação televisiva STV do Grupo SOICO. Fiquei sem saber o que devia fazer, sobretudo porque eu não havia feito o registo do meu produto”, conta.
Em resultado disso, enquanto o projecto decorria, no ano 2006, “fiquei frustrado, desequilibrado, de tal sorte que perdi a concentração não conseguindo mais criar. Por isso, nos anos 2006/7 andei desorientado”, diz acrescentado que, de qualquer forma, “apesar de tudo fiquei feliz ao perceber que as minhas ideias funcionaram e que tinham um enquadramento. Mas mesmo assim aquele cenário ofuscou-me. Recordo-me de que no primeiro ano eu não conseguia assistir aos jogos, mesmo pela televisão”.
Mas infelizmente, “não tinha como comprovar que a iniciativa era minha não obstante a existência de pessoas que acompanharam o processo da criação da ideia. Os meus amigos sabiam do projecto”.
Superar o trauma
Passados os anos de profunda melancolia ? os da criação e execução do Basket Show ? em relação à vida, entre 2007 e 2008, o nosso interlocutor recuperou a vontade de viver. Conseguiu um emprego algures na cidade da Matola no qual, a dado dia, em conversa com os colegas, revelou a sua história. Mas infelizmente, mais uma vez, conta, ”fui descriminado.
Além de me desdenharem, eles colocaram em causa a minha capacidade criativa em função das minhas origens. Disseram que eu não era capaz de imaginar e/ou de criar uma ideia grande e valiosa como o projecto Basket Show. Isso foi muito doloroso para mim”.
“Quando fico revoltado ganho inspiração. É nessas circunstâncias que começo a demonstrar aquilo que eu valho através da arte. É por isso que me sinto indignado ao perceber que em Moçambique há muitos jovens inteligentes, no entanto não são sábios”.
Neste contexto, “na madrugada do dia em que ocorreu este novo episódio, compreendi que devia contar essa história de uma forma melhor para que as pessoas acreditassem, o que passava por dizer a verdade não por via oral, mas por meio de mais uma produção genial de algo. Eu tinha que engendrar uma nova obra de um valor estimado que em princípio não sabia o que seria”.
Gueto Ekipament
Foi nessas circunstâncias que os murais do bairro de Maxaquene ganharam cor e vida, uma nova fisionomia “com o projecto Gueto Ekipament, a minha marca de roupa”. Na verdade, a preocupação de Fig era criar algo que representa um jovem do subúrbio, na longa espera.
“Criei um logótipo que retrata a vida de um jovem em eterna espera do dia em que o pessoal da Moçambique Celular (ou de qualquer outra organização que engana a juventude) lhe prometeu telefonar para dar alguma informação sobre o resultado da apreciação feita em relação ao seu projecto”. Um dos jovens, diga-se, é Fig Della Virgem.
Tristemente, “lamento perceber que neste ano, 2012, irão passar sete anos e, infelizmente, nada aconteceu” desabafa acrescentado que “dessa forma surgiu a marca Gueto Ekipament, por meio da qual passei a expressar os meus sentimentos nalguns suportes físicos, como, por exemplo, bonés, camisetas, sapatilhas e murais.
Tentei registar a marca, na altura, mas tive tantas dificuldades de tal sorte que preciso de apoio. Como já tenho alguma experiência em relação àquilo que me aconteceu antes entendi que não devia submeter a ideia numa instituição ? pessoa conceituada, um estilista, ou uma outra personalidade que detém uma empresa de marcas de roupa ? sem possuir um documento oficial que comprova que a marca é minha”.
Em nome da autodefesa
Enquanto não conseguir ? da parte das instituições de direito (SOMAS) ? um documento que comprove a paternidade da marca dos seus produtos, Fig Della Virgem vai cometendo actos que podem ser criminosos. De qualquer modo, acredita que os mesmos irão lhe servir de prova em relação à paternidade das suas obras.
“Fui atrevido na medida em que comecei a apostar em publicar o meu tag nas paredes públicas, nos PT´s, nos semáforos, entre outros espaços, como forma de popularizar a minha marca, garantindo assim provas de que sou o seu criador. Sei que isso pode ser crime. Por isso, diariamente, peço perdão a Deus”.
“Há vezes que saio à noite para estampar a minha marca nas paredes das residências dos meus vizinhos. Não tenho outra alternativa. Fui trabalhando assim, de tal sorte que foram surgindo personalidades ? músicos, estilistas, entre outras ? que começaram a apreciar as minhas roupas, adquirindo-as”.
Em resultado disso, “a minha esfera de acção está a se alargar”. Fig Della Virgem trabalhou na celebração dos dez anos da carreira do jovem estilista moçambicano Filiciano da Câmara. Para si a experiência foi boa porquanto tenha servido para criar potenciais clientes.
Por estas e outras razões, pode-se afirmar que a Gueto Ekipament está a evoluir provando, de certa forma, que contrariamente aos maldizeres que se alimentam em relação ao subúrbio no sentido de que é apenas vulnerável a cenário criminosos, de consumo de drogas e prática da prostituição, o bairro de Maxaquene possui pessoas talentosas que constituem uma mais-valia para este país. Por isso, “contesto sempre que aparecem algumas pessoas na imprensa a afirmar que os jovens não são criativos e que são inertes”.
Não temos qualidade
Artista multifacetado ? músico, pintor, ? gráfico, evangélico, um jovem assumidamente transformador, Fig Della Virgem revela que a sua arte é interligada envolvendo, inclusive, a poesia.
Uma vez que recebeu a conversão religiosa compreendeu que se devia dedicar a um estilo de Hip Hop em louvor a Deus. Trata-se de uma transformação pouco profunda sobretudo quando se considera que muito antes de se tornar crente, as suas composições musicais já estavam enriquecidas de uma forte componente didáctica.
Questionado sobre a dinâmica do seu trabalho gráfico, Fig considera que as dificuldades são enormes apesar de que quando se acredita no ofício são superáveis. O maior problema, para si, é a fraca cultura de qualidade no seio dos moçambicanos.
É por isso que a mediocridade se tornou “uma tendência contra a qual combato nos meus trabalhos. É lamentável dizer, mas nós ainda não temos qualidade. Pior ainda, estamos muito pouco preocupados com ela”, diz.
Esta realidade ? a da falta de qualidade ? pode ser analisada em pequenos aspectos da vida diária. Por exemplo, “se formos a analisar a maior parte da música moçambicana e dos vídeos que passam nalgumas estações de Rádio e de Televisão, percebemos a dissonância existente entre os contextos visual, áudio, assim como de conteúdo”.
Na rua, “somos os primeiros a comprar um pão empoeirado. Em inúmeras ocasiões vimos e lemos nos letreiros dos transportes semicolectivos a informação das rotas Xiquelene e Baixa, por exemplo, mas quando o motorisra desvia a rota o passageiro não contesta. Significa que, numa situação em que conhece o seu direito, fica indiferente perante as atrocidades que acontecem”.
Assim, “eu começo a perceber que, na verdade, a qualidade começa nas coisas aparentemente minúsculas. Por isso acredito que a qualidade provém da mente, da auto-estima, do coração, do nível de aceitação das nossas diferenças, assim como dos impostos que pagamos ao Estado”.
Por exemplo, “no caso dos impostos que pagos ao Estado moçambicano, tenho sentido que há vezes que são muito desproporcionais às nossas remunerações. Pagamos mais do que recebemos”.
Toda essa falta de qualidade “influencia o meu trabalho, sobretudo porque tenho procurado material ? chapéus, sapatilhas, tinteiros ? de muita qualidade, o que me tem sido oneroso. Tenho dois tipos de trabalhos os manuais, que considero obras de arte, bem como os gráficos”.
Ora, “não encontrando na praça moçambicana o material adequado para a produção das minhas obras, ressinto-me disso. Eu gostaria de oferecer produtos de uma boa excelência porque tenho consciência de que o moçambicano gosta de qualidade, mas é ofuscado pela mediocridade que se glorifi ca”.
Pior ainda
Uma vez iniciada na base, a mediocridade propaga-se ao mais alto nível afectando os nossos quadros que, muitas vezes, não conseguem fazer análises profundas e certas para trazer as soluções de que o país necessita para desenvolver.
Por exemplo, “se eu for uma pessoa instruída com uma formação profissional específica e for contratado para trabalhar numa instituição em que haja uma outra pessoa (não actualizada em relação à dinâmica actual do seu sector) pode-se dar o caso de, apesar de eu deter o conhecimento para resolver determinado problema, não fazê-lo porque estarei submetido a determinadas condições ou regras que tal figura me irá impor”.
Como tal “numa situação em que os jovens aceitam esta submissão, mesmo detendo um conjunto de ferramentas que os possibilitam modificar o cenário, a questão que se coloca é porque é que ficaram todo o tempo a estudar?”.
Por isso “eu compreendo que as pessoas estudam e se formam mas, muitas vezes, não zelam pelas causas da sua formação. Como consequência, quando a gente se desloca para uma dada empresa notamos com facilidade que as pessoas que por lá se encontram a trabalhar estão em sectores diferentes da área da sua formação”.
“As nossas perspectivas profissionais ? frutos dos nossos sonhos de infância em relação ao trabalho ? são frustradas, muitas vezes, porque o país não as oferece, mas acima de tudo porque nós, como quadros, também não as criamos”, diz.
Por essa razão “penso que o nível de desenvolvimento nacional é proporcional à forma como os nossos dirigentes pensam. Moçambique precisa de pensadores”, conclui.